terça-feira, 7 de outubro de 2014


07 de outubro de 2014 | N° 17945
MOISÉS MENDES

Bela

Tenho medo de ficar sem votar. De voltar a conviver com os dramas pessoais que as ditaduras produzem. De voltar a comprar seguro de vida de um professor universitário cassado, como aquele que batia de porta em porta no Alegrete, vendendo pecúlios. Aos 18 anos, eu comprei um pecúlio dele.

Não gostaria de ver de novo as pessoas apontarem para “suspeitos” na rua e dizerem: lá vai um comunista. De cochicharem pelas sombras coisas que não podiam ser ditas em voz alta. De serem constrangidas pela informação de que um vizinho é amigo dos homens.

Por isso, gosto dos barulhos da democracia. Domingo, depois de muito tempo, pela primeira vez passei o dia dentro da Redação. Eu, que fui repórter por tanto tempo, que corri atrás de candidatos para mendigar uma frase que salvasse uma matéria sem sal, anteontem fiquei na Redação.

Uma eleição remoça um jornalista. Mas ninguém remoçava mais, no dia da eleição, do que a minha amiga Maria Isabel Hammes. Bela gostava mais da cobertura de uma eleição do que do esforço para destrinchar um pacote econômico, no tempo dos desatinos de uma inflação de 40% ao mês.

Gostava tanto de eleição, que foi convocada várias vezes pelo Marcelo Rech e pela Rosane de Oliveira para coordenar mutirões da reportagem em coberturas eleitorais. Abandonava o posto de editora de Economia e se jogava na tarefa com entusiasmo de iniciante. Bela repartia energias.

Bela amava tanto uma eleição, que seus batalhões de repórteres estremeciam a Redação. Gargalhavam, divertiam-se. Se alguém tivesse alguma dúvida sobre os efeitos da democracia, a equipe da Bela era a prova de que uma eleição só faz bem. Trabalhavam como se estivessem numa gincana. Belinha morreu no meio da tarde do domingo, no dia da eleição, quando a Redação se preparava para tentar entender as novas surpresas da democracia. A Redação barulhenta murchou e, a partir da notícia da morte da Bela, começou a se comunicar por murmúrios.

Nos abalamos, choramos pelos cantos e nos confortamos. Ninguém parou. Mas se foi o ensaio de uma coisa típica de trabalhos desse tamanho – a fuzarca bem calibrada, que camufla a tensão, a pressa e o cansaço. A Redação abatida sentia a falta de uma figura frondosa, vigorosa e barulhenta.

Cheguei à Zero em 8 de dezembro de 1988. No dia em que entrei na Redação, Bela entrou junto. Trabalharíamos na Economia. Ela era perguntadeira. Quis saber quase tudo da minha vida. Soube tanto, que viramos colegas e irmãos. Brigávamos como primos por bobagens de vírgulas e números, para depois convergir no que de fato interessava. Foram minhas melhores brigas no jornal, reatadas com risadas que ela compartilhava com todos que estivessem na volta.


Ninguém mais, só eu, a chamava de Loira. Posso dizer, sem que ninguém me pergunte: eu ri muito com a Bela Hammes. Nos intervalos, quando sobrava tempo, a gente trabalhava.

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