12 de outubro de 2014 |
N° 17950
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Cidades narcisistas
Nelson Rodrigues teve há tempos uma intuição que
andou circulando de novo durante a Copa. Dizia ele que o brasileiro era um
narciso às avessas, que cuspia na própria imagem. Imagem que se completava com
outra, a do complexo de vira-latas: nossa autoimagem era tão ruim que não nos
permitíamos nos considerar bons em nada – até que veio 1958, e o Brasil
conquistou a primeira Copa do Mundo, credenciando-nos a abandonar o
vira-latismo (que, bom fantasma, retorna a cada tanto).
Tenho pensado nisso por estar em
Paris, e modulo a tese de Nelson para o âmbito das cidades. A capital francesa
é uma cidade narcisista – se é que uma entidade geográfica e histórica como a
cidade pode ser diagnosticada com o mal. (Outro brasileiro, não lembro quem,
uma vez disse que a Rede Globo era a única pessoa jurídica esquizofrênica que
existia.)
Paris é bonita? Claro que é. Tem
ruas cuidadas, calçadas lisas (mas os parisienses deixam seus cachorros fazerem
cocô nelas, sem culpa), praças e parques magníficos (em que, atenção, cachorro
não entra), monumentos em pencas, arquitetura sublime, museus e instituições de
encher os olhos e a alma. Tem razão de se achar bonita e, mais ainda, de ser
considerada bonita: ela é linda, de fato, mas o negócio é que todo mundo
concorda com a opinião dela sobre ela mesma.
Tão bonita é, e tanto sabe que é,
e tanto a consideram assim, que Paris é um narciso verdadeiro, enamorado de sua
imagem. Em Paris, qualquer coisa é, ou é vista como, superior, excelente. Um
parisiense qualquer, nato ou aderente, inventa de misturar isso e aquilo, em
comida ou em roupa ou nas ciências sociais e na filosofia, e voilà, entra em
cena mundial um novo frisson – e a periferia de Paris (o Ocidente latino todo,
ao menos) se apressa em seguir esse novo paradigma.
Me ocorreu que o Rio de Janeiro é
assim também. Na ex-capital brasileira, também narcisista mas não pelos feitos
humanos ou pela história, e sim pela natureza, também ocorre o lançamento de
modas aleatórias. Um carioca qualquer começa a jogar um pouquinho de bola, ou
uma nova atriz/modelo abre um sorriso e balança a mãozinha ou um músico propõe
novo suingue, e já o Fantástico nos garante que estamos diante de um novo
fenômeno, e o mundo sob influência carioca (a costa litorânea brasileira toda)
já sai copiando o novo modelo.
Em Paris e no Rio, numa
característica que Buenos Aires também compartilha, escritores e intelectuais
não se sentem mobilizados a conhecer outras formas de escrever e pensar, porque
as locais bastam e sobram – e, creem eles, devem ser imitadas dentro do raio de
sua ação.
São Paulo não é assim, nem Porto
Alegre, nem Montevidéu (nem Londres, mas aí já ingressamos em outra conversa).
Essas são cidades com autoconsciência forte, de vez em quando com complexo de
inferioridade em relação àquelas, as cidades do parágrafo anterior. Cara que
escreve ou pensa, sendo desses lugares aqui, tende a primeiro ler o que se
escreve e pensa em outras partes, para então tomar a palavra.
Claro, essa cautela não leva por
si só a produzir melhor do que os outros, como também não obriga a produzir
pior do que qualquer outro. Não é disso que estamos falando. De São Paulo ou do
Rio, de Montevideo ou Buenos Aires, de qualquer parte pode brotar a maravilha e
a patetice – o que quero dizer é simplesmente que nas cidades não-narcisistas
não existe aquela autoconfiança triunfante que há, que abunda, nas narcisas, e
que faz delas verdadeiros ninhos de invenção, coisa de que Porto Alegre e suas
irmãs carecem.
Na boa: você não precisa ser
marxista-leninista pra concordar que as necessidades do chapeiro são diferentes
das do dono da padaria, vai?
Na quinta, Armínio Fraga e Guido
Mantega foram entrevistados por Miriam Leitão, na Globonews. O que o Armínio
Fraga dizia era, numa livre tradução, que o PT está quebrando a padaria e, caso
isso aconteça, quem mais se estrepará será o chapeiro. Mantega se defendia
afirmando que a padaria não está quebrando, só está com pouco movimento por
conta da crise mundial. E lembrava que, mesmo nesse período difícil, o Brasil
manteve contínuos aumentos de salário e seguiu contratando chapeiros.
Armínio rebatia que a crise já
tinha passado, as outras padarias estão melhor do que a nossa e acusava o
governo de só manter o emprego e o salário nesses níveis na base da gambiarra.
As planilhas estariam cheias de araminho e fita isolante. É a crise!, se
defendia Mantega, alegando que na hora do dilúvio é mais importante botar a
bacia embaixo da goteira do que consertar o buraco no teto. Uma hora o teto vai
cair, vaticinava Armínio.
Com a gente, nunca caiu, se
orgulhava Mantega, com vocês, caiu três vezes! Era a crise, se defendia
Armínio. O que importa é que as pessoas estão bem, sorria Mantega. O que
importa é que o balancete vai mal, sorria Armínio.
E eu, que não sou chapeiro nem
dono de padaria, fiquei com a sensação de que os dois tinham razão e estavam
errados, alternadamente.
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