A traição não é o
fim
O
amor necessário deveria resistir ao contingente. Antigamente, talvez houvesse
mais sabedoria
Todos
temos inveja dos casais de antigamente. Do tipo que foram meus pais, juntos por
mais de 40 anos. Ou, como se diz no altar, “até que a morte os separe”. Sim,
ainda existem casais que passam suas vidas juntos. Mas também é fato que hoje a
separação se tornou fácil, rápida. Viver com alguém é aceitar ser transformado
pelo outro e, por sua vez, transformar. Há quem diga que casais de velhos que
passaram a vida juntos se tornam parecidos fisicamente. É verdade.
Separar-se
é tão comum que, quando encontro um amigo numa festa, tenho medo de perguntar:
– Como vai a Lúcia?
Pela
sua expressão, já sei que dei um fora. A mulher que chega com uma bebida
(poderia ser prima, amiga, mas não é) me encara com hostilidade. – A gente se
separou, mas ela está bem. Conhece a Jô?
Fica
um clima horroroso. O pior: quem passa por mal-educado sou eu. Deveria saber
que as pessoas se separam, encontram novos amores. Mas como fazer? Às vezes é
tão rápido e surpreendente! Se a pessoa continua casada e a gente não pergunta
da parceira, aí, sim, é doutorado em falta de polidez. Depois de várias
situações constrangedoras, aprendi a ficar tateando: – E a vida, como vai?
Para
ver se o amigo dá uma pista.
A
vida dos casais de antigamente nem sempre era tão boa assim, principalmente
para as mulheres. Sem profissão, eram obrigadas a suportar maridos
autoritários, casamentos fracassados. A entrada no mercado de trabalho tornou a
dignidade feminina possível também na vida íntima. Se está com alguém, é porque
quer. Ao lado disso, penso que vivemos numa época em que se confunde o amor
necessário com o contingente. O amor necessário, segundo o filósofo francês
Jean-Paul Sartre, é aquele que organiza a vida.
Que
estabelece alicerces. É o que nos leva, enfim, a uma vida a dois, na expressão
mais comum. O contingente é a paixonite, o interesse, a amizade súbita que pode
arrastar alguém para a cama alheia, sem que isso signifique um compromisso. O
que chamo de amor contingente ganha o nome de traição.
Um
amor necessário tem de resistir a uma traição, penso. Mas a maioria das pessoas
tem horror só da palavra –traição. No passado, vamos combinar, era mais
simples. Maridos traíam. Mulheres se conformavam. Ou, na iminência de ser
descobertos, maridos piravam. Tive um colega de infância cujo pai teve um caso
com uma prostituta. Ela descobriu o endereço da família e ameaçava contar para
a mulher. Fez chantagem. Ele perdeu o que tinha, para a mulher – o amor
necessário – não saber.
Quando
soube, foi pior: a traída descobriu também que a grana tinha sumido e aí, sim,
literalmente, a casa caiu. Mulheres também traíam, claro. A figura da mulher em
busca de uma grande paixão rendeu um dos maiores romances da literatura, Madame
Bovary, de Flaubert. Não à toa, ela leva a família à falência e termina se
suicidando com arsênico.
Atualmente,
a traição é motivo de briga, escândalo, separação. Como no caso do famoso
cantor sertanejo que teve um filho fora do casamento com uma socialite. A
mulher se separou, mas sem alarde, até para não prejudicar a carreira do ex.
Mas me pergunto. Ela fez bem? Penso que não. Estavam juntos desde os tempos de
pobreza. Tiveram filhos. Eram, um para o outro, necessários. A outra foi
contingente. Aconteceu, mas o cantor não ficou com ela. Não era o amor de sua
vida.
A
escritora francesa Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre conheciam a diferença
entre os dois tipos de amor – e se permitiam ambos, coniventes. No livro A
força da idade, Simone de Beauvoir explica a visão de Sartre. “Trata-se de um
amor necessário: convém que conheçamos também amores contingentes”, diz ela.
“Nossa compreensão duraria tanto quanto nós mesmos, mas ela não poderia suprir
as riquezas efêmeras dos encontros com seres diferentes.”
É
preciso sabedoria para saber quando alguém veio para ficar. E também para
quando é bom, mas passageiro. Talvez os casais antigos lidassem melhor com os
amores contingentes porque fingiam ignorá-los. E a falsa inocência ajudasse a
manter os casamentos. A clareza psicológica dos relacionamentos atuais talvez
pudesse ajudar noutro sentido: entender que, muitas vezes, um dos parceiros
precisa conhecer alguém, viver uma paixão, para voltar renovado e reforçar os
laços.
Quem
é essencial só precisa saber aguardar. Muitas vezes, é a traição que salva um
casamento.
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