25
de abril de 2014 | N° 17774
DAVID
COIMBRA
Notícias sobre um
velório
Tenho
que falar com o Faraco sobre o velório de Shakespeare. O Sérgio Faraco é
especialista em Shakespeare, em jogo de sinuca e em Titanic. Também é
especialista em escrever contos. Ele lapida as frases. Ah, eu também lapido,
lapido e burilo, claro que sim, mas não como o Faraco. O Faraco pega uma frase
e a analisa de longe e de perto, como a uma pedra de diamante, e dá uma
melhorada, e depois deixa que fermente.
Toma-a
de novo após algum tempo e de novo a examina e tira uma lasca daqui, raspa ali,
bota mais um tantinho acolá e a coloca em fermentação outra vez. Repete esse
processo até que a frase esteja perfeita como a vida devia ser, e não é. Então
passa para a próxima frase. E a analisa de longe e de perto... Só sendo um
Faraco para escrever um conto do Faraco.
Pois
uma vez o Faraco decidiu escrever um livro sobre Shakespeare.
Criterioso
como é, compreendeu que precisava saber mais sobre o mundo de Shakespeare, a
Inglaterra dos séculos 16 e 17, com sua fascinante soberana Elizabeth, a Rainha
Virgem, filha do não menos fascinante rei Henrique VIII com Ana Bolena, a
mulher por quem os britânicos mudaram de religião e que morreu decapitada pela
espada de um carrasco que ela própria mandou importar da França.
Faraco
estudou essas coisas e percebeu que tinha de estudar também a França, não por
causa da habilidade de seus carrascos, mas devido às relações dos franceses com
os ingleses. E, estudada a França, Faraco viu que tinha de estudar a Espanha,
rival da Inglaterra. E assim o fez, e escreveu sobre franceses, espanhóis e
ingleses, chegando, desta forma, à introdução de seu livro a respeito de
Shakespeare.
Então,
parou.
Repassou
o que havia escrito.
E se
espantou: em seu arquivo, no computador, pulsavam e fremiam 600 páginas. De
introdução! Onde aquilo ia parar? O Faraco não teve dúvidas: deletou tudo,
antes que enlouquecesse de obsessão.
Talvez
alguém ainda convença o Faraco a escrever esse livro. Assim eu não precisaria
incomodá-lo perguntando acerca das circunstâncias do velório de Shakespeare.
Porque imagine: no mesmo 23 de abril de 1616 em que Shakespeare morreu, na
Inglaterra, Cervantes estava sendo sepultado debaixo da terra da Espanha. Os
dois maiores intelectuais do mundo mortos numa única nesga de mês.
O
mundo sabia disso, naquele tempo sem internet, celular e Jornal Nacional? As
pessoas tinham pelo menos uma vaga ideia do que significavam aqueles dois
personagens que deixavam a vida juntos para juntos entrar na História?
Suponho
que não. Suponho que os homens dos albores do século 17 nem tenham se dado
conta de que perdiam Shakespeare e Cervantes ao mesmo tempo. Eles não sofreram
com isso, imagino. Não foram em peregrinação chorosa à Inglaterra e à Espanha
porque pouco se peregrinava naquela época. Ou até se peregrinava, mas era
exatamente isso, uma peregrinação – as pessoas viajavam pouco. Antes, na Idade
Média, não viajavam nada. Ficavam em seus lugares a vida toda, e pronto.
Não
havia engarrafamentos, como os que aconteceram em toda parte no feriadão de
Páscoa. Não havia overbooking. Não havia informação instantânea,
compartilhamentos na internet, mensagens de celular, WhatsApp. As pessoas
nasciam naquele lugar, ficavam naquele lugar, namoravam e casavam-se com as
pessoas daquele lugar, trabalhavam naquele lugar e morriam naquele lugar.
Parece um mundo tão monótono. Parece um mundo tão pobre. Mas foi aquele mundo
que produziu um Shakespeare. Foi aquele mundo que produziu um Cervantes. E o
século 21, com todo o seu aparato, o que produz? Olhe o Facebook e responda.
Não,
não, você não precisa de tanta velocidade nem de tanta novidade para ser bom. O
Faraco sabe disso.
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