terça-feira, 29 de abril de 2014


29 de abril de 2014 | N° 17778
DAVID COIMBRA

Chega de cerveja de cereja

A todo momento lia algo do tipo: “Ulisses é um divisor de águas da literatura”.

“Ulisses foi o fim do romance, porque foi o auge do romance”.

Ulisses, Ulisses.

Ulisses, você sabe: o alentado e, como se vê, festejado romance do dublinense James Joyce. Existe até um dia de comemoração a Ulisses, o 16 de junho.

Era muita propaganda. Eu, na fosforescência dos meus vinte e poucos anos, estava ansioso por ler Ulisses e me cevar naquele marco do intelecto humano e aprender algo. Então, lutei como um tigre para amealhar alguns trocados e adquiri uma edição com tradução do Antônio Houaiss. Um volume poderoso. O chamado cartapácio. Como diziam que era um livro difícil, decidi enfrentá-lo em condições favoráveis: numa fresta tranquila do dia, numa poltrona tranquila da casa.

Foi uma decepção.

Só que não foi o livro que me decepcionou: decepcionei-me comigo mesmo. Como não conseguia gostar daquela obra-prima incensada por todos os sapientíssimos críticos literários? Não contei a ninguém que tinha detestado Ulisses. Se todos os inteligentes adoravam o romance, o fato de eu não ter gostado só podia significar o quanto era obtuso. Meus amigos da faculdade perguntavam se havia lido e eu tascava:

– É um divisor de águas da literatura. Foi o fim do romance, porque foi o auge do romance.

Na penumbra do meu quarto, porém, sozinho com meu travesseiro, suspirava: cara, a verdade crua e triste é que não gostei desse Ulisses.

Mais tarde, botei a culpa no tradutor. Antônio Houaiss é um cara que escreve “entrementes”. Um cara que escreve entrementes é, obviamente, chato. Aquele Antônio Houaiss pode muito bem servir para escrever dicionário, para dar aula de português, para discorrer sobre a sintaxe ou até para ser crítico de literatura, mas para fazer o leitor dançar com o texto, ah, não, isso não. Ritmo, entende? Faltava ritmo àquele Antônio Houaiss.

Foi um consolo, mas, outra vez no escuro do meu quarto, outra vez com as orelhas afundadas no travesseiro, me questionei: será que não sou eu o culpado? Será que não sou uma besta por não gostar de Ulisses?

É possível.

Em todo caso, meu amigo Ivan Pinheiro Machado me deu outra edição, com tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Eu aqui, na minha já comprovada ignorância, não sei quem é essa senhora, embora saiba que é, de fato, uma senhora, porque nenhuma garota se chamaria Bernardina no século 21. Bernardina é nome de vó. Minha vó, inclusive, se chamava Bernardina. Dona Dina, ela preferia. Mas, como dizia, não sei quem é Bernardina da Silveira Pinheiro, mas vou dar uma chance a ela. E a Joyce. E a mim mesmo. Logo estarei lendo Ulisses numa fresta tranquila do dia, numa poltrona tranquila da casa.

No entanto, mesmo que seja capturado por essa joia da literatura e passe a festejar o 16 de junho bebendo Guiness, a verdade é que James Joyce não facilitava as coisas para ninguém, ou eu não estaria fazendo todo esse arrazoado. Não, não, James Joyce tinha lá seus interesses elevados, que não necessariamente eram os mesmos do seu leitor, sobretudo de um leitor na cunha sul do Brasil. E com um tradutor como Antônio Houaiss, um homem que aparafusa um entrementes na frase sem nenhuma hesitação, ah, bem, então as coisas ficam realmente difíceis.

Se bem que admito não ser entusiasta de experimentalismos. Essas cervejas com gosto de erva mate, de beterraba ou de frutas vermelhas, essas cervejas temperadas com pimenta ou cravo, essas cervejas que estão na moda, por exemplo, não me seduzem. Nada disso. Prefiro o chope ortodoxo. A cerveja dourada. Gelada. Brasileira.


O texto também. O texto pode ser elegante, profundo, insinuante e também ser fácil. São os melhores textos, escritos por gente que cultiva a arte de fazer coisas difíceis parecerem fáceis. Edmund Wilson escrevia assim. Edmund Wilson era um Messi do texto. Messi encontra espaços no campo onde espaços não há. Aránguiz, o chileno do Inter, tem essa capacidade. Luan, o jovem do Grêmio, é igual. Não que os compare com Messi. Nem com Edmund Wilson. Comparo a qualidade que todos eles têm de ser simples. E ser simples é, simplesmente, bom.

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