quarta-feira, 16 de abril de 2014


16 de abril de 2014 | N° 17765
EDITORIAIS ZH

CRUELDADE REVOLTANTE

Indignação e revolta são sentimentos previsíveis, mas insuficientes para o enfrentamento da consternação provocada por mais dois casos de violência e crueldade no Estado. As mortes da jovem Kimberly Rückert e do menino Bernardo Boldrini fazem com que todos tentem compreen-der a dimensão das tragédias. Os episódios macabros abalam não só a comunidade de Três Passos, mas a população inteira de um país em que os limites entre a convivência civilizada e a barbárie foram ultrapassados há muito tempo.

O que se pode dizer dos dois casos, por mais óbvio que seja, é que ambos se agregam a uma aterrorizante e quase paralisante rotina de atrocidades. É o momento de entender fatos como esses para muito além da abordagem policial. As duas mortes expressam uma realidade que cobra reações substantivas de todos, e não só manifestações de inconformidade com possíveis falhas alheias.

É incontestável que as duas mortes foram provocadas pelo total descaso com a vida e pelo desprezo por eventuais medidas punitivas. Ambas foram claramente planejadas. Mas é natural que o assassinato de uma criança de 11 anos provoque mais revolta, por se tratar de um indefeso, órfão de mãe e, de acordo com as informações até agora divulgadas, desamparado por conflitos com a madrasta.

Por isso, deve-se evitar a armadilha de refletir sobre a morte do menino a partir dos eventos mais recentes. Bernardo pode ter sido desamparado não só pela rejeição dentro da própria casa, mas por não ter contado com a pronta resposta de todos os que vinham ouvindo seus apelos.

Há evidências de que a criança emitiu, a seu modo, sinais de que vivia sob sofrimento. O que as instituições devem apurar, a partir do trabalho da polícia, é onde e quando os pedidos de socorro do menino não surtiram os efeitos que deveriam provocar. Não se trata de prejulgar, mas de não se resignar diante dos indícios de que em algum momento ocorreram providências insuficientes ou omissões.

Argumentos previsíveis podem alegar que crianças em situação de risco se multiplicam pelo país e que as autoridades fazem o que está ao seu alcance. Mas sabe-se igualmente que, como em qualquer área do setor público, também esta tem deficiências crônicas e graves. É o momento certo para que deixem de ser ignoradas, mesmo que todos estejam consternados com o que aconteceu.

Esta também é, em meio ao trauma, a oportunidade para que – além da óbvia identificação e punição dos responsáveis – aproximem-se do debate, como protagonistas da busca da compreensão e das soluções, pessoas e instituições posicionadas à distância dos fatos, como comentaristas e espectadores. Crueldades como essas que transtornam o Estado resultam de um conjunto de fatores, dos quais não escapam a família, a escola e, enfim, a comunidade nas suas mais diversas formas de representação.


Polícia, Ministério Público, Conselho Tutelar e Justiça são, portanto, expressões da sociedade. Não há reparação para as mortes de Kimberly e Bernardo. Mas há, sim, como reagir ao horror, desde que nossas reações concretas e consequentes passem pela admissão de que todos nós falhamos. Este reconhecimento é pré-requisito para o desenvolvimento de estratégias preventivas mais eficientes.

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