23
de abril de 2014 | N° 17772
MARTHA
MEDEIROS
A loucura mora ao
lado
Por
muitos anos, minha mãe morou num prédio que ficava ao lado de uma clínica
dermatológica. O médico responsável morava com a família no andar de cima da
clínica. Uma tranquilidade: no caso de um imprevisto, era só bater na porta
desse vizinho providencial e o atendimento seria imediato e eficaz. Minha mãe
nunca precisou, mas certa vez levou lá minha filha, ainda pequena, durante uma
ocasião em que eu estava viajando. E o atendimento foi realmente imediato e
eficaz. Um luxo.
Passado
um tempo, a esposa e o filhinho do médico evaporaram. A clientela diminuiu. Até
que a clínica fechou de vez. O médico passou a ser visto raramente. Barba por
fazer, roupas desleixadas. Minha mãe e eu chegamos a comentar sobre a
esquisitice da situação, mas não imaginamos que fosse algo grave, até que um
dia nos deparamos com a foto dele estampada na página policial do jornal, sendo
acusado do assassinato da mulher e do filho. Durante algumas semanas, muitas
reportagens foram feitas, mas os corpos nunca foram encontrados e o aparente
crime ficou sem solução. A casa foi vendida, o cara sumiu, o mistério venceu.
Lembrei
desse episódio quando soube da tragédia de Três Passos. Todo crime é chocante,
mas ficamos ainda mais chocados quando os prováveis assassinos são os chamados
cidadãos acima de qualquer suspeita – como se dinheiro, beleza e classe social
imunizassem contra a violência e a patologia. Não imunizam nem evitam nada, apenas
nos colocam todos na mesma calçada. Talvez estejamos cumprimentando todo dia
alguém que mataria uma criança, confiantes de que a vizinhança é gentil e que é
uma sorte não vivermos entre marginais.
De
forma objetiva, Bernardo foi vítima da ganância da madrasta e da amiga desta,
mas necessitamos de uma explicação mais profunda e para isso recorremos ao
nosso vasto cardápio de acusações. Há quem responsabilize o ateísmo, a
televisão, os games, os filmes de ação, a liberalidade dos costumes, a
decadência do império, a revolução feminista, a corrupção, os distúrbios
psíquicos, o consumismo, a internet, o narcotráfico, o individualismo etc.,
etc., etc., até compor uma lista apocalíptica de fatores que justifique o
saudosismo: “A vida já foi mais valorizada”.
Foi
mesmo? Conforta pensar que somos vítimas de uma era, mas o fato é que a vida
sempre foi trágica. Nosso susto é apenas proporcional à proximidade com que a
tragédia se manifesta. Lá nos cafundós do judas, onde crianças também morrem
pelas mãos de parentes, tudo parece mais fácil de deglutir: elas não se parecem
com nossos filhos e nós não parecemos com seus pais. Mas, quando acontece na
casa ao lado, aí a gente se embaralha e só nos resta entregar os pontos e
reconhecer que não há explicação que console. Simplesmente o mundo é e sempre
foi um hospício.
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