08
de abril de 2014 | N° 17757
DAVID
COIMBRA
Que vontade de ouvir “corpo
esgualepado”
Ainda
estou impactado com o caso da rádio de Giruá.
Giruá.
Nunca pensei.
Giruá
é localidade que antigos cronistas denominariam de “pacata cidadezinha”. Lá,
como em todas as pequenas e grandes cidades do Brasil, existe uma rádio, e
nessa rádio há um singelo programa que toca músicas de bandinhas alemãs. “Rola
Bandas”, o apropriado nome do programa.
Certo.
Nesse fim de semana, o programa seguia seu modorrento curso, quando um ouvinte
pediu que a rádio executasse, e executar é um bom verbo para o episódio, pois o
ouvinte pediu que a rádio executasse a música “Corpo Esgualepado”, de autoria
de Xirú Missioneiro.
Eu
aqui na minha ignorância, eu que não conheço a obra de Xirú Missioneiro nem
jamais ouvi a música “Corpo Esgualepado”, percebo que um e outra não se tratam
de coisa de bandinha alemã. Foi o que também notou o locutor, um rapaz chamado
Jair.
E
agora quero falar de Jair. Vi sua foto na zerohora.com. Uma foto de arquivo
pessoal, da qual obviamente ele se orgulha, ou não a destinaria para
publicação. Jair lança olhar grave para o fotógrafo, não sorri, mas faz sinal
de positivo com o dedão.
Tem
o cabelo penteado com rigoroso critério e está atrás de impenetráveis óculos
escuros. Ali está um homem que se leva a sério. E, pela confiança que exala da
imagem, um homem que deve fazer algum sucesso com as fêmeas da espécie. Sim,
sim, tenho certeza de que Jair é cobiçado pelas giruaenses de todas as idades.
Sim.
Mas dizia
que ele, Jair, intuindo que “Corpo Esgualepado” não faz parte do repertório de
qualquer bandinha alemã, recusou o pedido do ouvinte e desligou o telefone.
Tudo
normal, não fosse o ouvinte uma pessoa com baixa tolerância a frustrações.
Ocorre que, em minutos, o ouvinte se materializou dentro do estúdio da rádio,
armado com uma adaga de bom tamanho, com os dois gumes afiados, prontos para o
talho da carne frágil.
Chico,
é como chamam o invasor.
Jair
deixou o microfone ligado e a gravação do episódio foi para zerohora.com. Está
tudo lá. Chico queria muito ouvir a música “Corpo Esgualepado”, bateu com a
adaga na mesa do estúdio a fim de enfatizar sua indignação com o não
atendimento do pedido.
– Tá
errado! – gritava.
Jair,
ante a ameaça, concordou em acatar a reivindicação do ouvinte.
– Tá
bom... – disse, num fio de voz.
Mas
Chico logo se retirou, rosnando que Jair é um “bagaceira”. Sua voz de santa
revolta foi sumindo à medida em que ele se afastava pelo corredor. Creio que
“Corpo Esgualepado” não foi executada, afinal. O que talvez seja uma vitória do
radialista, não sei, eu mesmo estou curioso para ouvi-la.
Mas
o que realmente resta do caso é sua motivação. Será a música “Corpo
Esguapelado” tão inefável a ponto de fazer uma pessoa querer apunhalar quem a
impede de ouvi-la? Não acredito. Chico, o ouvinte, deve ser mesmo o que
diagnostiquei acima: um homem com baixa tolerância a frustração.
Eis
um problema real. A vida é repleta de frustrações. Aceitá-las faz parte da
estratégia de sobrevivência do ser humano. Essa, inclusive, é a maior lição do
esporte. No esporte, perde-se mais do que se ganha. Pegue qualquer um dos
grandes. Eles só são grandes quando aprendem a perder. Cassius Clay caiu e,
quando se reergueu, era maior do que nunca, mas Tyson não se conformou quando
foi derrubado e ainda está na lona. Grêmio e Inter são poderosos, mas mesmo
seus supertimes perderam mais títulos do que ganharam. Mesmo os supertimes.
O
esporte tem essa função. Ensinar a perder. Os torcedores deviam saber disso. A
realidade, porém, é outra. Torcedores não admitem frustrações. Reagem a elas
como o Chico, esbravejantes, de adaga em punho. Como é que não entenderam que a
vida é assim, que você não tem tudo o que quer, na hora em que quer, que é
preciso ter paciência, que, mesmo que você esteja ansioso para ouvir um
clássico como “Corpo Esgualepado”, ele não será tocado num horário de bandinhas
alemãs, que a taça é uma só e os concorrentes são vinte, como não sabem disso?
Algo
se perdeu, no futebol, e talvez na civilização brasileira. Algo,
definitivamente, ficou para trás.
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