22
de abril de 2014 | N° 17771
ARTIGOS
- Orlando Faccini Neto*
A indiferença e o caso de Três
Passos
Recentes
estudos sobre nosso funcionamento cerebral sepultaram o ponto de vista de que
razão e emoção afiguravam-se divergentes, de maneira que o desenvolvimento de
nossa racionalidade não envolvia a participação de estados afetivos. Hoje,
diz-se que razão e emoção caminham juntas, e não se descarta alguma inteligência
emocional, para que nas empreitadas da vida logremos algum sucesso.
Paradoxal
que seja, todavia, entre os estados afetivos reside justamente a possibilidade
de sua ausência. É que, se muitos nos movemos por compaixão, por ciúme, por
medo ou alegria, há aqueles cuja vida moral se notabiliza pela indiferença.
Não
em todos os seus propósitos, mas para certos âmbitos de relação, alguns
indivíduos agem em completa desconsideração para o que lhes seja alheio, e
dando de ombros perseguem, no reino da individualidade, suas metas e seus
objetivos. Não possuem disposição para mergulhar nas dificuldades dos outros,
mesmo que agudas, o que não esconde um sintoma de isolamento, em que o sujeito
se aparta dos demais, ocultando-os diante da proeminência de si mesmo.
Frisemos,
porque essa é nossa primeira conclusão: seja o indiferente, seja aquele que age
movido pela exaltação de algum estado afetivo, justamente porque as emoções e a
racionalidade são indistintas, não podem alegar para si o que em Direito Penal
chamamos de inimputabilidade. Com efeito, sabem o que fazem e variados
estudiosos do tema cogitam até mesmo de uma contemporânea educação emocional,
em que os incomodados procuram alterar a base de seus afetos.
Isto
dito, é necessário apontar que certos casos, situados embora neste plano
emocional, são convertidos em normas. O Direito Penal não lhes é, passe o
trocadilho, indiferente. Matar por repulsa racial, ou por um ciúme possessivo,
agrava a pena do homicida.
Certas
obrigações emanam da legislação penal, entre as quais se situa o dever de
cuidado. O artigo 13, parágrafo 2º do Código Penal dispõe que o resultado de um
crime é imputável àquele que, omitindo-se, tinha entretanto o dever de
evitá-lo. Esse dever, autêntico dever de proteção, decorre da lei para os casos
que envolvem a relação entre pais e filhos. A indiferença, neste caso, é
legalmente repelida.
O
genitor, portanto, que nada faz diante de uma situação de risco incidente sobre
seu filho, excluída a hipótese em que ele próprio viesse a correr algum risco,
é abrangido normativamente pelo resultado delituoso. Sequer a combinação ou o
acordo de vontades com o executor do ato se há de exigir: um pai que, ciente da
presença de um maníaco nos arredores de sua casa, deixa-a aberta, na esperança
de que o facínora elimine a sua prole, não estará excluído de responder pelos
homicídios realizados.
As
informações até agora havidas sobre o caso de Três Passos conduzem a esse tipo
de reflexão. Que se não alegue, no desvio moral da indiferença, uma qualquer
inimputabilidade. Mesmo a maldade não nos faz “loucos”, pois de certo modo
somos capazes do mal, se bem que a maldade ou ódio ainda signifiquem uma
projeção afetiva que considera o outro como pessoa, sendo certo que a
indiferença é a pura e simples desconsideração. E que se não relegue apenas aos
executores uma responsabilidade que mais não é do que uma decorrência da
violação do inerente dever de cuidado, emanado da condição paterna.
Ao
saber da morte de sua mãe, Mersault, personagem d’O Estrangeiro, de Camus,
sentiu nada, e assim demonstrou inequivocamente a sua indiferença. Mas ainda
chamou-a de mãe.
*Juiz
de Direito, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Lisboa,
professor
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