29
de abril de 2014 | N° 17778
MARIO
CORSO
O dono do mundo
Passeava
com minha filha na Cidade Baixa e encontramos o dono do mundo. Pelo menos era o
que ele gritava aos passantes, desde a calçada onde estava estirado: “O dono do
mundo sou eu, não são os americanos, não são os japoneses, não são os alemães,
eu sou o dono...” . Além de reclamar para si a posse do planeta, xingava todos,
delimitando sonoramente seu reino. Passamos reto, pisando leve em seus
domínios. Nós sabíamos do que se tratava, já trabalhamos com pessoas assim.
Discutimos se ele estaria melhor num hospício.
A
abertura dos manicômios trouxe para as ruas uma população que permanecia
oculta. De uns anos para cá, aumentou o número de loucos de rua entre os
mendigos habituais. Nossa reação automática é pensar que isso foi um erro, na
rua eles estão sem ajuda, sem terapia, sem medicação. Estão misturados ao lixo,
com que provavelmente estão identificados, ocupando um lugar de dejeto social.
O
certo é que não estavam melhores antes, mesmo se internados numa das poucas
boas instituições e se esse abrigo fosse dotado de bons profissionais. Os
antigos manicômios eram museus de peças humanas falhadas, ocultas do nosso
olhar. É duro reconhecer uma impotência, mas nós não temos uma resposta a não
ser paliativa para certos desistentes da nossa sociedade. Nesses casos
extremos, tratamentos que visem a abordagens corretivas são inúteis. Para
ajudá-los, só nos resta acompanhá-los e tentar fazê-los sentir-se considerados,
como outro cidadão qualquer.
Sua
postura no mundo, sua doença – pessoalmente prefiro evitar essa palavra, pois
não dá conta do problema – é recusá-lo em bloco. Eles desistiram de nós. Para
tanto fundam um novo mundo, uma nova lógica. Nesse espaço imaginário, eles
vencem. Querer convencê-los do contrário é tão contraproducente como
impossível. É mais fácil convencer alguém são de que seria louco do que
arranhar minimamente esses sistemas delirantes.
O
único motivo para mantê-los institucionalizados seria para não tropeçarmos
neles e nos deparar com as fronteiras sinistras da condição humana. A
internação era boa para nós, pois a loucura nos constrange e desconcerta. Encerrados,
eles definham ainda mais, são privados dos cenários do mundo e de nós. Eles não
recusam nossa presença, é da nossa lógica que eles prescindem. Gostam de
circular neste mundo, mesmo sabendo que perderam a guerra de impor seu sentido.
Se
você duvida sobre minha opinião e testemunho (conheci muitos dos antigos
hospícios), recomendo o livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex (Ed.
Geração, 2013). Obra para estômagos fortes, conta histórias de internados.
Esses mesmos que hoje estão nas ruas. Depois me diga o que é pior.
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