13
de abril de 2014 | N° 17762
O
CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA
O TRAIDOR DO
RIO
Sou porto-alegrense do subúrbio, da Porto Alegre dura
de concreto. Minha avenida de referência, quando guri, era a Assis Brasil, com
sua capa de fumaça sobre os ombros dos edifícios, seu baixo comércio de
miçangas de plástico, seus ônibus sempre atrasados e sempre apressados, seus
trabalhadores de olheiras roxas e pele cinzenta.
Não
havia amenidades silvestres na minha Porto Alegre. O rio era uma paisagem
distante, uma massa d’água amarronzada que derramaram detrás do muro. Para mim
e para meus amigos, não havia braço de Porto Alegre que se estendesse para além
da Cidade Baixa. A Ponte de Pedra, que os escravos construíram para que Dom Pedro
II conseguisse viajar da urbe pulsante para a bucólica Zona Sul, essa ponte de
pedra Dom Pedro a atravessou, nós não. Nós, só em dia de jogo. Era a Borges,
era a Padre Cacique, era o Beira-Rio, e fim. Porto Alegre acabava ali.
Por
isso, o rio ainda me surpreende, como já me surpreenderam certas mulheres
delicadas, mulheres que surgem quebradiças e que, no entanto, sabem ser suores,
furores e tremores. O rio é assim. O rio Guaíba, que nem rio é.
Arrependo-me,
porto-alegrense arraigado que sou, de não ter vivido mais o rio. Dias atrás,
foi o que fiz. Passei um dia inteiro à beira do Guaíba, fui levado de barco rio
adentro, vi ilhas intocadas pelo homem, ilhas de macacos e jaguatiricas, ilhas
de mato virgem e cerrado, impossível de cruzar. Singrei por águas senão
cristalinas, limpas de beber. Prossegui até a Lagoa dos Patos e me embasbaquei.
Esteve sempre ali, ao meu lado, uma paisagem tão linda quanto as mais lindas de
Santa Catarina. Fiquei pensando: quantos tesouros estavam junto a mim e os
perdi por procurá-los em algum lugar distante?
Quando
voltei para casa, sentia-me encantado e um pouco triste. Sentia-me traidor do
rio. Traidor por omissão e também por desprezo. E ainda dentro do carro, ao
avistar a última ponta visível de água, na Praia de Belas, prometi me redimir.
Prometi que, de agora em diante, tudo será diferente. Serei mais interessado,
mais atencioso, mais carinhoso com o rio da minha cidade. Que, mesmo
negligenciado, sempre foi o meu rio.
Tudo
flui
Heráclito
dizia que um homem não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio. Era uma frase
que servia de ilustração à sentença basilar da sua filosofia, baseada no
seguinte princípio:
“Tudo
flui”.
Assim,
o rio muda a todo instante, e o homem que nele se banha muda também. Eu, hoje,
não sou o mesmo que fui ontem (cá entre nós, espero ser melhor, mas não estou
muito certo disso).
Heráclito
sabia das coisas, mas era um filósofo muito brabo. Detestava os seus
concidadãos, lá de Éfeso. Afastou-se deles, tornou-se um ermitão. Escreveu toda
a sua obra sem que houvesse por perto um único ser humano com quem partilhar o
mate. Depois de concluído o livro, depositou-o em um templo, aos pés de mármore
da estátua da deusa. Os habitantes de Éfeso correram para ler o que ele
escrevera e beber de sua sabedoria.
Leram.
E
não entenderam nada – devem ter se sentido mais ou menos como me senti ao ler
Ulysses, de James Joyce.
A
partir de então, passaram a chamá-lo de “O Obscuro”. É como chamo James Joyce.
Heráclito
não era fácil, mas essa frase, embora possa ter outras interpretações, é clara
e verdadeira:
“Tudo
flui”.
Por
isso, o rio Guaíba de hoje não será jamais o da minha infância. Por isso,
aquele rio Guaíba eu o perdi.
Os
frutos da água doce
Havia
quatro rios no Jardim do Éden: os irmãos Tigre e Eufrates, o Ganges e o Nilo.
Com o que você pode ver como era grande o Paraíso, uma vez que o Ganges fica na
Índia, o Tigre e o Eufrates no Iraque, e o Nilo no Egito, os quatro formando
uma suave meia lua entre o Oriente Próximo e o Oriente Distante, mas sempre no
Oriente.
Lá
era o Paraíso, e não o litoral catarinense.
Heródoto
dizia que o Egito é uma dádiva do Nilo. Poderia dizer também que a civilização
é uma dádiva dos rios da Terra. O Ganges é o rio sagrado dos hindus, que se
banham nele em busca das bênçãos de seu milheiro de deuses. Tempos atrás o
Ganges estava poluído, tal a quantidade de cadáveres que os indianos jogavam em
suas águas, para que lhes servissem de mortalha. E foi na outrora faixa fértil
entre o Tigre e o Eufrates, a chamada Mesopotâmia (“Entre Rios”), que nasceu a
agricultura, a irrigação, a roda, a família – a Civilização.
Os
homens levantam suas cidades onde há água de beber: Londres é a cidade do
Tâmisa; Paris, do Sena; o Danúbio azul corta Viena; o Reno é o mais belo rio da
Alemanha; as águas do Tibre já ficaram tingidas de vermelho do sangue dos
legionários que os bárbaros passaram a fio de espada; o misterioso Amazonas não
é um rio, é quase mar; e o Guaíba descobriram que é um lago, não um rio. Não
gosto disso. Um lago é plácido, um rio corre, e o Guaíba corre, corre sempre,
para algum lugar. Para algum lugar.
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