18
de abril de 2014 | N° 17767
DAVID
COIMBRA
O sal da
terra
“Vós
sois o sal da terra”, disse Jesus no Sermão da Montanha. “Vós sois a luz do
mundo”, enfatizou, e era para os seres humanos que falava. Para nós.
Nós
somos o sal da terra.
Mas
não vou em frente antes de falar do meu medo. Tenho medo de religiões e
ideologias, porque umas e outras são matéria de fé. São dogma. No momento em
que você se torna dogmático, você tem um lado e do seu lado está o Bem,
enquanto o Mal está do lado de lá. Pessoas mataram e morreram, matam e morrem
por causa de religiões e ideologias.
Além
do mais, aquelas certezas tantas e tão sólidas fazem com que as pessoas deixem
de pensar. Não precisa, já está tudo pensado, basta seguir o prescrito e
dividir o mundo em dois hemisférios, sem ponderações: aqui estão os certos, lá
estão os errados.
Dito
isso, que fique claro: não estou falando do Jesus religioso, nesta Sexta-Feira
Santa; não estou falando do Jesus cristão. Estou falando de um dos mais
revolucionários filósofos morais da História, e da peça central do seu
pensamento, que foi aquele Sermão.
A
filosofia de Jesus é tão inovadora que nenhuma de suas igrejas compreendeu ou
aplicou o seu principal ensinamento. Ninguém entendeu essa passagem:
“Não
oponhais resistência ao mau; se alguém te bater na face direita, oferece-lhe
também a outra. E se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica dá-lhe
também a capa. (...) Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”.
Olhando
assim, você pode achar humilhante tamanha resignação. Mas Jesus não está
sugerindo submissão. Ele se põe acima disso. Está dizendo, simplesmente, que
não vale a pena. Ou, como já disseram os Beatles, a vida é muito curta para
perder tempo com brigas e confusões. Life is very short.
O
Sermão da Montanha é surpreendente. O trecho do qual Erico Verissimo colheu o
título de um de seus livros “olhai os lírios do campo”, é de rara sabedoria e
de construção preciosa. Jesus dizia que o homem não deve se preocupar com
acumulação de riquezas. Não deve se preocupar nem com seu sustento: “A cada dia
basta o seu cuidado”. Que frase! O que ele queria dizer com isso? O mesmo que falou
a respeito de brigas e confusões: que se preocupar não vale a pena. Ou, usando
outro clássico dos Beatles, deixe estar. Let it be.
Mas
não, não vou fazer uma exegese do Sermão da Montanha a partir dos Beatles. Não
seria tão superficial. O Sermão da Montanha é profundo. Algumas nesgas dele
você pode levar como regra. Como quando Jesus diz que cada um julga os outros
com sua própria medida. Com essa sentença, ele diz o mais importante sobre a
alma humana. Diz que o Mal é o que sai da boca do homem. E é.
Não
são palavras santas. São palavras sábias. Mas, de todas elas, as que mais me
intrigam foram as que citei lá em cima, na abertura do texto. Como o homem pode
ser a luz do mundo, se há tanta crueldade, se pais que matam filhos, como se
suspeita acerca daquele pai de Três Passos?
Vinha
pensando nisso, vinha intrigado com isso toda a semana, até que, na
quinta-feira, minha mulher me contou um caso prosaico. Ela é arquiteta. Naquele
dia, havia ligado para o eletricista com quem trabalha, um homem muito sério,
muito compenetrado. Assim que atendeu, ele se desculpou: não poderia falar,
porque seu filho tinha caído na escola, machucara a boca e precisava ser levado
ao hospital. E então, antes que ela conseguisse perguntar como estava o menino,
aquele homem sisudo começou a chorar.
Ela
me relatou essa história por telefone. Eu estava na redação. Desliguei com o
coração apertado, pensando naquele pai, no quanto ele deve amar seu filho e em
como devia estar sofrendo com o sofrimento do menino. E, ainda na redação,
fechei os olhos e roguei em silêncio para que o pequeno estivesse bem, para que
em breve os dois estejam de novo sorrindo, e pensei que é por causa de pais
como esse, por causa de amores como esse que, sim, vós sois a luz do mundo. Vós
sois o sal da terra.
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