07
de abril de 2014 | N° 17756
LIBERATO
VIEIRA DA CUNHA
O relógio da
gare
A
proximidade dos edifícios, mesmo deste em que habito, brindado com uma
esplêndida vista do Guaíba, nos torna a todos voyeurs. No meu caso, de nada
disso que estão pensando. Mas descobri, esses dias, um relógio enorme, redondo
e de números romanos, entronizado no que deve ser a sala de estar de um dos
apartamentos que a luz do entardecer devassa neste ponto do Centro Histórico.
Me
pareceu sabem o quê? Um relógio de gare, e aqui devo explicar que gare era uma
palavra francesa muito usada quando ainda havia trens de passageiros, para
designar uma estação de estrada de ferro. Cachoeira tinha uma. As meninas em
flor iam até ela nas tardes de domingo para desfilar sua beleza e trocar
secretas miradas com algum passageiro da Capital, na doce, tranquila certeza de
que nunca mais o veriam e não seriam tomadas por desfrutáveis (vocábulo da
época das gares).
Os
rapazes também iam – e alguns se apaixonavam por alguma deusa pela eternidade
de uma escala, enquanto outros, menos românticos, se inclinavam pelo plantel
local e mais à mão, pelo menos na sessão das oito do Coliseu (O Seu Cinema,
Poltronas Estofadas).
Mas
deixem voltar para o relógio daquele oitavo andar à minha esquerda. Percebi,
com o olhar intruso, que estava parado. Marcava, se não erro desta distância,
permanentemente seis horas.
Constatei
ainda que o apartamento que decorava era habitado por uma só dama. É fácil
descobrir isso, quando você é algo bisbilhoteiro, como os cronistas das
segundas-feiras. E daí deduzi que, ou ela não lhe dava corda, ou os delicados
mecanismos internos daquele tipo de relógio se negavam a girar, desconformes
com uma época em que o mundo circundante tinha sido desertado de gares, pelo
menos nestes tristes trópicos.
Foi
então que comecei a pensar que sua dona e senhora, por sinal muito bonita, como
as meninas de Cachoeira, o guardava não para marcar chegadas e partidas de
trens, mas para lembrar algo mais íntimo e definitivo. Ela o conservava
marcando seis horas – não sei se da manhã ou da tarde, embora seja mais
inclinado pela tarde – para recordar um ido amor.
Um
amor daqueles que cinde as almas de paixão e de ternura, um daqueles que é fogo
que arde sem se ver, se me permite o Camões, que é ferida que dói e não se
sente, que é um não querer mais que bem querer.
Mas
então soaram sete horas.
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