sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011



04 de fevereiro de 2011 | N° 16601
DAVID COIMBRA


O mistério do Santa Augusta

Algo estranho estava acontecendo no Presídio Santa Augusta, em Criciúma, em meados dos anos 80: de uma hora para outra, os presos passaram a se interessar pelo mundo das letras. Havia lá uma sala pequena, não muito maior do que um lavabo, em que eram guardados os livros e as revistas recebidos em doação, lugar que o diretor chamava, com alguma demasia, de “biblioteca”.

E não é que, de repente, a biblioteca tornou-se popular na cadeia? Todos os detentos apareciam para solicitar livros ou revistas, inclusive os analfabetos funcionais.

– Quero aquele dali – pedia um assaltante vulgar, que mal sabia falar português, apontando para o milheiro de páginas de Guerra e Paz, de Tolstoi.

Que mistério da literatura era aquele? A língua de fogo do Divino Espírito Santo havia lambido as frontes dos presos do Santa Augusta? Alguma febre por adquirir conhecimentos os contaminara?

Um dia, o diretor descobriu: os presos estavam arrancando as páginas internas dos livros para usá-las na limpeza pessoal, já que o papel higiênico era artigo raro na casa.

Com desencanto, ele constatou que a maioria dos livros e revistas da “biblioteca” tornara-se inútil para a leitura, com dezenas de páginas centrais faltando, empregadas que foram em finalidades menos nobres, mas prementes. Isso é uma cadeia brasileira. É um local em que as pessoas não têm papel com que se limpar.

Mas, no meu trabalho como jornalista, conheci presídios bem piores do que o Santa Augusta. Houve um tempo em que na Penitenciária do Jacuí, a PEJ, os funcionários iam trabalhar deixando no estacionamento seus carros abertos e com chave na ignição, prontos para a fuga no caso de rebelião, que ocorria com inquietante frequência.

Essas medidas eram tomadas sobretudo nos dias frios, já que as janelas das celas não têm vidros e, ante a perspectiva de enregelar, os presos preferiam a revolta.

Também conheci o Madre Pelletier, aonde fui algumas vezes para dar palestra às detentas. E o Presídio Central, que, todos sabem, é o inferno incrustado no Partenon.

É isso, aliás, que espanta: todos sabem. Todos sabemos que nos presídios brasileiros os homens são amontoados feito porcos em celas exíguas; que lá não há condições de higiene; que lá eles, em vez de se regenerar, aviltam-se; que nessas masmorras eles são agredidos, torturados e violentados.

Todos sabemos disso. Como permitimos? Como podemos suportar que, na segunda década do século 21, em uma democracia consolidada, em um país de regime laico, homens sejam atirados em calabouços medievais?

As barbaridades do passado, crueldades que, julgamos hoje, só poderiam acontecer numa época de trevas, essas barbaridades são cometidas hoje, pelo Estado brasileiro. O Brasil não envolve um homem em uma mortalha e o enterra até a cintura para que seja morto a pedradas, como faz o Irã. Mas o Brasil deixa que esse homem seja estuprado num cárcere infecto.

Alguém tinha de fazer algo a respeito. Os juízes estão fazendo. Estão mandando soltar os presos. Ladrões, assaltantes, assassinos, criminosos de todos os gêneros são devolvidos às ruas porque não há onde guardá-los com dignidade. Quem sofre com isso? Você, contribuinte.

Quem pode resolver isso? Você também. Desde que não considere natural que um homem, seja qual for o crime que cometeu, não tenha direito nem a papel higiênico para se limpar.

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