sábado, 26 de fevereiro de 2011



27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
MARTHA MEDEIROS


Som e fúria

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal?

O filme O Discurso do Rei pode ser apreciado tanto por seus diálogos espirituosos como pelo desempenho de Colin Firth e Geoffrey Rush, ambos impecáveis, mas o filme me tocou principalmente por seu aspecto psicológico, ao demonstrar o valor terapêutico de se exprimir raiva.

Uma das razões que levou o rei George VI a sofrer de uma gagueira aparentemente incurável foi o fato de passar por alguns constrangimentos na infância e sofrer tudo calado, como se fosse natural obrigarem um menino canhoto a escrever com a mão direita ou a conviver com uma babá que o deixava sem comer.

Sobrevive-se a coisa muito pior do que isso e nem todos se mantém reprimidos, e muito menos se tornam gagos, mas de uma forma ou de outra a ausência de voz na infância cobra seu preço, que pode ser alto ou nem tanto. A minha repressão infantil saiu mais em conta do que a do rei da Inglaterra, e mais produtiva também.

Não venho de uma família real e tampouco sofri qualquer abuso que me travasse a vida, mas exprimir raiva, decididamente, nunca foi um esporte incentivado lá em casa. Dizer que não havia motivos seria inocência demais de minha parte: claro que havia, sempre há.

Todo ser humano se rebela contra a autoridade – no caso, os pais. Mas eu não expressava em voz alta o que me incomodava, não xingava, não berrava, não dizia palavrões, não saía do sério – nunca. Vontade não faltava. Foi então que fiz minha voz sair não pela boca, e sim pelos dedos.

Não me tornei uma escritora maldita, mas, secretamente, passei a exorcizar alguns demônios através da poesia. Já que não mostrava as garras em casa ou na rua, procurei deixar nas folhas dos livros uma impressão mais realista de mim mesma, aquela que não possui nenhum sangue azul.

Achei que bastaria, mas não.

Só recentemente, de uns anos pra cá, me senti verdadeiramente convocada pra guerra. Aprendi a apresentar minhas armas e externar minha agressividade latente. Meio desajeitada no papel, admito, mas as tentativas não foram totalmente mal sucedidas: cheguei um pouco mais perto da natureza selvagem que caracteriza a todos. Às vezes custo a entender o que isso traz de bom, além de evitar gagueiras reais ou metafóricas.

Será mesmo necessário saber xingar, berrar e dizer palavrões para ser considerada o que se chama por aí de normal? A vida sem controle se torna mais intensa, concordo, mas só quem conhece o pavor que tenho de barracos pode imaginar o quanto me é desconfortável protagonizar cenas de brigas e insultos.

Não nasci pra coisa, prefiro continuar usando a escrita silenciosa para elaborar meus conflitos, mas ao menos aprendi que não irei pra cadeia se, eventualmente, soltar a fúria através da voz, e que não perderei a majestade se, em vez de cisnes brancos, povoar o lago do meu castelo com alguns cisnes negros também.

Mas isso já é outro filme.

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