sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011



25 de fevereiro de 2011 | N° 16622
DAVID COIMBRA


Eu quero aquela dor

Há pouco, ainda esta semana, meu filhinho queixou-se de dor de cabeça. Dor de cabeça? Um menino de três anos de idade?

Fiquei preocupado. Mas, acionada por telefone, a médica não deu muita importância ao caso, fez uma referência rápida ao calor dos dias e mandou dar ali umas gotinhas. Peguei-o no colo e comecei a lhe apalpar a testa:

– Dói onde, filhinho? Aqui? Aqui?

E eis que, num instante, ele sorriu e anunciou:

– Não estou sentindo mais nada, papai!

Sorri de volta. Só que, naquele exato momento, quem passou a se sentir meio estranho fui eu. E estranho continuei horas afora e piorei a cada palmo da tarde e, à noite, ardia em febre. No final do dia seguinte é que dei uma melhorada.

É claro que aquilo não foi a manifestação de algum superpoder, eu sugando a dor do meu filho pela ponta dos dedos e absorvendo-a. Minhas tarefas de paternidade seriam muito facilitadas, se tivesse essa faculdade. Não foi isso. Foi uma de duas possibilidades. A primeira:

Mesmo sem perceber que havia ficado nervoso, “somatizei” a dor do meu filho e a adotei, enquanto ele ficava bom graças ao remédio ministrado minutos antes. Quer dizer: os subterrâneos da minha mente agiram por desígnio próprio e atuaram diretamente sobre o meu corpo, ainda que não fosse essa a minha vontade manifesta.

Fosse assim, eu teria um poder, afinal. Eu e você. Todos nós. Bem treinados, poderíamos dominar as reações do nosso corpo. Poderíamos controlar os batimentos do coração e o fluxo do sangue nas veias, poderíamos aplacar a fome e queimar a gordura que se acumula nos flancos, poderíamos fazer luzir mais os olhos e tornar mais sedosos os cabelos.

Poderíamos interromper o crescimento das unhas e fazê-las crescer de novo. Poderíamos ser super-nós-mesmos. Desde que aprendêssemos os segredos da mente e da vontade.

Seria tão bom. Mas não acredito nisso. Acredito na segunda possibilidade, que é a da vulgar coincidência. A coincidência torna a vida tão menos interessante. Mas ela existe. Muitos dos acontecimentos decisivos da História da Humanidade são construídos por coincidências. Depois do feito, é que os analistas se põem a ordenar as causas. Aí tudo parece premeditado, tudo parece inevitável. Aconteceu porque tinha de acontecer, aconteceria de qualquer maneira. Houve cálculo. Houve um plano racional desenhando a ação.

Bobagem.

Na maioria das vezes, não é assim. Na maioria das vezes, as pequenas circunstâncias, a força da vontade, a inércia gerada pela preguiça ou o simples acaso determinam uma longa sequência de acontecimentos.

O acaso também pontua vidas comuns. Todos morreram na queda do avião, só um se salvou. O sobrevivente dirá que foi a mão de Deus que o livrou da morte. Por quê? Por que ele, e não qualquer outro dos 324 que morreram? Ele é especial? Ele é ungido? Teve sorte? Nada disso. Ele está vivo por acaso.

O Senhor não gosta mais dele do que dos outros, o destino dele não está escrito, em lugar algum está inscrita a hora improrrogável do seu passamento. Muito sem graça, sem cor e sem charme. Mas é como é. Pena: você não é diferente de ninguém.

Pena ainda maior: não posso pegar emprestadas as dores do meu filho.

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