segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011



28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
PAULO SANT’ANA


Dia de enterros

A cena se passou na porta do Paraíso, ontem de madrugada.

Jeová estava na porta, esperando os convivas, quando surgiu o primeiro do dia, o escritor Moacyr Scliar.

Jeová cobriu Scliar carinhosamente com seu manto e disse:

– Moacyr, que mais eu podia exigir de ti que tu não cumprisses? Exigi que fosses filho agradecido e pai dadivoso e tu cumpriste. Exigi que fosses marido fidelíssimo e cumpriste. Exigi que fosses colega franco e leal, cumpriste.

Exigi que fosses grande nas letras e nas tradições judaicas e cumpriste. Que mais eu poderia exigir de ti, Moacyr, que não cumprisses? Pois até isso eu te fiz, exigi algo impossível de ti, mortal Moacyr: que fosses imortal. E até isto tu conseguiste ser, Scliar. Não havia mais o que exigir de ti. Entra e sob este teto encontrarás o reconhecimento divino.

É um tempo de falecimentos. O que se vai fazer? Morreu também ontem, na mesma hora do Scliar, o ex-senador Octávio Cardoso, marido da senadora Ana Amélia Lemos.

Eu o encontrava sempre nas festas, bonachão, sorridente, o espírito apurado, vai deixar saudade entre os que privaram com ele.

A julgar pelo número de doenças que tenho, o próximo enterro deverá ser o meu.

Eu falei isso ontem no velório do Scliar e me lembrei que, apesar das 16 doenças que tenho, três graves, continuo escrevendo esta coluna.

Então várias pessoas me disseram, consoladamente, que o que me ergue e me mantém vivo é justamente isto: trabalhar, mesmo estando doente.

Mas a respeito do meu enterro, que deverá ser o próximo, quero lembrar que vou querer presente, além dos meus amigos e de meus leitores, um banjo.

Eu preciso de um banjo no meu enterro, além dos cavaquinhos e violões, um banjo.

Vocês sabem o que é um banjo, creio. É aquele instrumento tipo bandolim que, no entanto, tem um couro esticado atrás das cordas.

Um banjo será inesquecível com seus acordes roucos no meu enterro.

Essa mania vem da infância, do bairro Partenon.

Não quero morrer nem em janeiro nem em fevereiro: o pessoal fica na praia e não vem a enterros.

Quero morrer na primavera, todo mundo em Porto Alegre, porque quero casa cheia no meu enterro.

Não sei por que quero que sirvam vinho do Porto no meu velório.

Vinho do Porto e doces bem-casados. É uma mania de defunto que eu tenho.

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