sábado, 19 de fevereiro de 2011



20 de fevereiro de 2011 | N° 16617
DAVID COIMBRA


Os subterrâneos de Paris

Marat. Como sofreu esse pobre homem.

Era médico de bom conceito, filósofo de ocasião e jornalista furioso. Formou, com Robespierre, o incorruptível, e Danton, o corruptível, o triunvirato que comandou a Revolução Francesa. Chamavam-no de “o amigo do povo”.

Antes da Revolução, quando fugia dos esbirros do governo, meteu-se nas catacumbas de Paris e lá contraiu uma doença de pele que o torturaria pelo resto da vida. Até hoje, ninguém descobriu exatamente do que se tratava. Houve quem suspeitasse até de lepra.

O fato é que Marat penou. Passava as 24 horas do dia e os sete dias da semana sentindo coceiras dilacerantes, e é por isso que deve ter sofrido como poucos. Sua mulher tentava aliviá-lo pressionando-lhe panos úmidos sobre o corpo, mas chegou um momento que nem isso adiantava mais. Desesperado,

Marat decidiu que enfrentaria o que lhe sobrava da existência imerso em banhos medicinais. Tomou de uma grande banheira, acoplou na borda uma escrivaninha improvisada, enrolou uma toalha na cabeça, e pronto. A partir de então, era assim que encararia o mundo: imerso n’ água.

Marat escrevia e comia dentro da banheira. Dentro da banheira, recebia visitantes e refletia sobre os caminhos da Revolução. Dentro da banheira, morreu assassinado. Numa manhã abafada do verão parisiense, uma jovem chamada Charlotte Corday, sua inimiga política, comprou uma faca de 15 centímetros de lâmina e foi até a casa do “amigo do povo”. Pediu para falar com ele sob o pretexto de denunciar uma conspiração planejada por um grupo de deputados.

A mulher de Marat a despediu alegando que o marido estava ocupado. Charlotte foi para casa, ruminou sua frustração e voltou. Insistiu em ver o jornalista.

A esposa mais uma vez mandou-a embora, garantindo ser impossível vê-lo. Horas depois, lá estava Charlotte outra vez, gritando que precisava porque precisava falar com Marat. Tanto alardeou, que ele finalmente permitiu sua entrada. Charlotte sentou-se num banquinho ao lado da banheira e começou a ditar os nomes dos deputados suspeitos de traição. Enquanto Marat anotava, resmungando que “eles merecem a guilhotina”, a moça sacou a faca das dobras do vestido e o apunhalou.

Foi o fim do sofrimento de Marat.

Essa história deveria ser suficiente para desestimular qualquer francês a se infiltrar nos subterrâneos de Paris. Não é. Eles adoram rastejar pelas catacumbas da cidade, em meio a ossos humanos de mais de dois séculos de idade e ratazanas de mais de dois palmos de comprimento. São os chamados “catafilistas”, que não apenas exploram os mais de 300 quilômetros de túneis escavados sob a capital gaulesa: lá eles reúnem os amigos, promovem festas, montam jantares românticos.

Um dia, você pode estar passeando pelo Marais e ser surpreendido por bandos de jovens emergindo dos esgotos feito baratas, aquelas francesas diáfanas dentro de suas minissaias sumárias, aqueles franceses descabelados enrolados em suas echarpes.

E é isso o mais fascinante. Os franceses cultuam até os intestinos de Paris. Já não há o que baste na superfície? Eles já não vivem na mais bela cidade do mundo, com seu obelisco egípcio que foi construído há 3 mil anos; com os seis ataúdes que guardam os restos de Napoleão, menos seu pequeno pênis, que foi subtraído por um médico americano; com a imponência de aço da Torre Eiffel, que Guy de Maupassant achava monstruosa, mas que hoje é maravilhosa; com o Louvre, o Père Lachaise, o Le Procope e o Relais d’Lentrecot?

Não basta isso tudo?

Para os franceses, não. Os franceses têm de festejar até as entranhas de Paris.

E nós? O que temos de melhor, aqui em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, que poderia despertar a admiração em todo o mundo, como desperta a Champs Elysèes e o Museu Rodin?

Grêmio e Inter. A dupla Gre-Nal é maior do que o Rio Grande do Sul. Porto Alegre é a única cidade do Brasil que tem dois campeões do mundo. Justificam-se, portanto, todos os investimentos públicos na Dupla. É o que temos de melhor. É o que temos de festejar. Como se, debaixo de nossos pés, serpenteassem os esgotos de Paris.

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