sábado, 19 de fevereiro de 2011



19 de fevereiro de 2011 | N° 16616
CELSO GUTFREIND | CELSO GUTFREIND (Interino)


As pequenas memórias

Foi o professor Dionísio Toledo que me conseguiu um ingresso para assistir à palestra do José Saramago. Na Fundação Gulbenkian, de Paris, com um tempero a mais: o escritor acabara de receber o Prêmio Nobel.

Claro que fui. Sentei-me entre uma linguista francesa e uma professora de Teoria da Literatura, que era romena e estava radicada na França. Atrás, alguém portava um livro do Todorov e, na frente, um do próprio Saramago. Todos esperavam que ele falasse de literatura.

Ele não falou. Disse que estava meio cansado de falar de literatura. Queria falar da vida e escolheu o tema da infância.

Também disse que estava cansado de falar da infância e tentaria ser breve. Por isso, escolhia dois momentos principais na vida de uma criança: o primeiro – grande alegria –, quando se tornava curiosa e começava a perguntar por quê. O segundo – tristeza enorme –, quando os adultos não suportavam tanta curiosidade e convenciam a criança a parar de perguntar.

O escritor abordou outros assuntos, inclusive o cinema; afinal, estava diante do cineasta Manoel de Oliveira, então com 90 anos e alegre por fazer perguntas.

Não as reencontro na memória. Só esta síntese dos dois momentos fundamentais, que retomei, tempos depois, ao ler As Pequenas Memórias. Neste livro, Saramago resgatou os seus primeiros anos. Mostrou que entendia mesmo da infância e suas negociações delicadas com o medo e com o tempo: “Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada hora tinha apenas sessenta minutos...”.

Entre as pequenas memórias do autor e as minhas, menores ainda, dei-me conta de que uma infância é decisiva, porque está repleta de encontros formadores. É deles que nasce o primeiro momento com a alegria de ser curioso, o desejo de perguntar, verdadeira fonte de tudo, incluindo a literatura do Saramago e os amores.

O escritor, em poucas palavras, disse o que importa. Ou quase tudo. Faltou dizer que novos encontros, durante a vida, são chances preciosas de enfrentar a tristeza do segundo momento. Porque há professores, amantes e amigos capazes de nos relançar na vida. Há o cinema e a literatura do Lobo Antunes. E a do Saramago. Mas, em suas pequenas memórias, não faltou dizer: “... ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer”.

Ali, sim, sugeriu que, após a alegria de encontrar a curiosidade e a tristeza de perdê-la, um encontro com um livro ou com o outro pode criar este terceiro momento decisivo em que recuperamos o desejo de perguntar.

Uma infância é decisiva, porque está repleta de encontros formadores

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