sábado, 26 de fevereiro de 2011



27 de fevereiro de 2011 | N° 16624
DAVID COIMBRA


Cuidado com o Homem de Vermelho

Minha mãe tinha muito medo do Homem de Vermelho.

Volta e meia falava nele, sempre depois de um suspiro, as gotas de horror lhe pingando das esquinas da boca:

– Ai, meu Deus, o Homem de Vermelho vai bater na minha porta...

O Homem de Vermelho existiu até o fim dos anos 70. Nos 80, derreteu. Tanta coisa derreteu em meio à bruma ácida dos anos 80. O Brasil mudou demais na passagem de uma década para outra. O Brasil, o mundo, nós todos estamos sempre mudando.

A vida vai se transformando devagar, um dia depois do outro. Você não consegue perceber. Olha-se no espelho de manhã, está um dia mais velho. Porém, o que você vê é a mesma imagem de ontem.

A sua cidade também envelheceu, o prédio onde mora, as ruas por onde anda, as árvores que lhe dão sombra e os cães que o acompanham, tudo e todos mudam a todo tempo, mas é impossível notar a diferença.

Só 79 para 80 é que notamos.

Foi uma mudança brutal e brusca. Algo deve ter acontecido no fim de 1979, exatamente nos últimos dias de dezembro. Aquele pequeno pedaço de tempo foi uma fronteira.

Um marco. Poucos dias se passaram e, sem que houvesse uma revolução, sem que ocorresse um cataclismo, sem que as Torres Gêmeas fossem derrubadas nem que os turcos tomassem Constantinopla, sem que o Arquiduque Fernando ou o presidente Kennedy fossem assassinados, sem que o homem pisasse na lua ou que Pelé marcasse seu milésimo gol, sem que nada de memorável acontecesse, tudo mudou.

Quando o Brasil entrou nos anos 80, era outro Brasil: as ruas estavam mais perigosas, as cidades mais violentas, as pessoas menos ingênuas, ninguém mais acreditava nos militares como governantes, as crianças pararam de chamar os adultos de senhor e as mulheres não sabiam mais cozinhar.

Até os anos 70 ainda era possível o Opalão, o Fusca, o Corcel, o DKW e o Gordini, ainda era possível Ademir da Guia e Roberto Rivellino, ainda era possível caminhar na rua de madrugada, atravessar o Parque da Redenção à meia-noite, ainda era possível ser comunista ou anarquista. Até o finzinho dos anos 70 os times tinham ponta, as pessoas transavam sem camisinha, os militares eram chamados de milicos, o Chico Buarque lapidava 10 diamantes musicais por ano, os médicos fumavam nos hospitais, as meninas de 15 anos de idade eram encaradas como mulheres e as mulheres de 35 anos de idade eram encaradas como senhoras.

Até o fim dos anos 70 ainda existia o Homem de Vermelho, e ele punha medo nas pessoas, sobretudo na minha mãe.

Imagine que o Homem de Vermelho vestia-se inteiro de vermelho: sapatos, meias, calça, camisa, gravata, paletó, tudo vermelho e só vermelho, nada além de vermelho. Para chamar a atenção mesmo. O Homem de Vermelho era o cobrador. Quando ele batia numa porta todo paramentado de vermelho, os vizinhos já sabiam: o dono da casa devia e não pagou. Era o opróbrio público.

Por isso a minha mãe tinha tanto medo do Homem de Vermelho. É que, nos anos 70, ela comprou uma TV e uma geladeira à prestação lá na Ibraco da Assis Brasil. Uma ousadia para quem ganhava salário de professora primária. Mas era preciso, nós não tínhamos geladeira nem TV.

As mensalidades começaram em cinco cruzeiros e foram subindo. No fim do ano passavam dos 300 cruzeiros. Minha mãe não conseguia pagar. Então, atravessava as noites em claro temendo a visita do Homem de Vermelho.

Fosse nos anos 80, não teria medo. Porque nos anos 80 ninguém mais sentia vergonha de dever. Donde, o Homem de Vermelho se tornou inútil. Perdeu o emprego. Hoje, se alguém o visse batendo em alguma porta, comentaria:

– Olha ali um colorado radical.

Ninguém pensaria que se tratava de um cobrador tentando envergonhar o devedor, porque nenhum devedor, depois dos anos 80, sente vergonha de dever. Os exemplos mais notórios dão os clubes de futebol. Todos devem, não negam, pagam quando podem, alguns não pagam. Quando isso acontece, quando não pagam, dá-se um fenômeno horrendo: os jogadores comentam, contam uns para os outros, e o clube fica com imagem de mau pagador. Nenhuma fama pode ser mais destrutiva.

É o caminho mais curto para a derrota. Logo, estão certas as direções quando tomam medidas preventivas, como o enxugamento que o Inter está promovendo. Pode ser dolorido, mas é melhor do que ter o Homem de Vermelho na porta.

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