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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
José J. Camargo *
28 de fevereiro de 2011 | N° 16625
ARTIGOS
Adeus, meu quase amigo!
A divisão original parecia simples: os amigos verdadeiros, aqueles que não mudam o jeito de nos querer depois que tudo de bom nos acontece, esses que são raros e preciosos, as figuras com quem convivemos sem emoção extremada, esses que são numerosos e inevitáveis, e os inimigos, que sempre queremos que sejam poucos, mas não conseguimos evitar que existam, nem desconhecer que pela estatura deles se mede o tamanho do que fazemos.
Com a vida e os encontros fortuitos descobrimos que há outro grupo, importante, mas pouco prestigiado: o dos que poderiam ter sido nossos amigos de verdade! E quando um deles se vai, aguça a sensação de perda irreparável.
Quase fui amigo de Moacyr Scliar.
Nosso primeiro contato foi traumático e inesquecível. Ele sofrera um acidente de carro e com várias fraturas de costelas foi transferido do Pronto Socorro para a UTI do Pavilhão Pereira Filho num final de tarde. Depois de drenado o pneumotórax e anestesiadas as costelas, ainda continuava respirando com esforço.
Com uma oxigenação satisfatória foi decidido observá-lo por algumas horas. Naquela noite fui a uma festa e no meio da madrugada, antes de voltar para casa, decidi dar uma passada na UTI para ver como andavam as coisas. Observei-o dormindo e depois de algum tempo ele despertou, me viu nos pés cama e sorriu. Sedado que estava, voltou a dormir.
Uma semana depois, quando recebeu alta, lhe perguntei como tinha sido este traslado agudo entre um indivíduo normal que passeia na rua e um paciente que entra numa emergência com a sensação de morte iminente. Ele me descreveu o medo que sentira e referiu, espontaneamente, que nunca esqueceria a sensação de segurança ao descobrir dois olhos grandes e serenos a vigiar seu sono no meio da madrugada.
Depois disso organizamos duas jornadas sobre a literatura na medicina, na UFCSPA, e aí descobrimos que tínhamos algumas paixões literárias em comum, a começar pela Morte de Ivan Ilitch, onde Tolstoi discute a morte desejada pela incapacidade da família e seus amigos de conviver com o sofrimento sem perspectiva.
Quando entrei no jogral explicando aos alunos que o relato era cruel e podia parecer exagerado, mas que quem convive com doentes terminais, e especialmente os que têm dor de difícil controle, entende o drama de Tolstoi e a solidão desesperada de Ivan Ilitch, encontrei um brilho de encantamento nos olhos do Scliar, aquele brilho que expressa identidade de sentimentos.
Como seres apressados e itinerantes, nos habituamos aos papos rápidos e compactos de aeroporto, onde uma vez, em São Paulo, me agradeceu muito por ter interrompido a abordagem de um fã que resolvera lhe contar as últimas piadas do humor judaico, logo para ele, que se orgulhava de conhecer todas elas!
No último encontro, no Salgado Filho, combinamos um encontro na Academia Nacional de Medicina, onde ele faria uma conferência sobre o humor médico, esse inesgotável manancial que permeia as relações humanas sacudidas pela tragédia, mas sempre embaladas pela esperança.
Com sua morte, a tristeza de que perdemos esse último riso, e a massacrante sensação de que poderíamos ter convivido mais.
Que pena, meu quase amigo!
* Professor, membro da Academia Nacional de Medicina
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