sábado, 19 de fevereiro de 2011



20 de fevereiro de 2011 | N° 16617
VERISSIMO


Outra Alexandria

Três mil anos separam o Facebook, o Google e o Twitter da biblioteca egípcia

Não sei se a Internet e seus instrumentos comunicantes tiveram mesmo tanta influência nessa revolução no Egito como dizem, mas se tiveram não deixa de ser curioso que o mais novo meio de compartilhar informação tenha sublevado a terra onde floresceu a ideia do conhecimento compartilhado.

Três mil anos, mais ou menos, separam o Facebook e o Twitter, para não falar do Google, da biblioteca de Alexandria, onde pela primeira vez se quis reunir e expor tudo que se sabe do mundo. O que também foi uma revolução.

Foi Demetrius, um ex-aluno do Liceu de Atenas fundado por Aristóteles, quem começou a biblioteca, sob ordens de Ptolomeu I, em cuja corte ele foi uma espécie de filósofo residente.

Demetrius costumava se maquiar e pintar os cabelos de loiro, gostava tanto de mulheres quanto de rapazes e dava grandes banquetes que acabavam em orgias, mas ficou na História como construtor da primeira biblioteca universal de que se tem notícia, pois a vontade de Ptolomeu era ter em um só lugar toda a memória da antiguidade e todo o pensamento humano.

A biblioteca de Alexandria surgiu numa época de transição, em que a escrita substituía a fala na transmissão da cultura e do conhecimento e toda uma tradição oral, como a memorização e repetição dos épicos homéricos, cedia ao texto manuscrito - que durante algum tempo foi considerado coisa de maus espíritos, entre os gregos.

A mudança tecnológica é análoga à que se vê hoje, quando discutem se o livro eletrônico vai ou não matar o livro tradicional e levar nossa alma junto. Com sua biblioteca Demetrius, discípulo de Aristóteles, fortaleceu a linha oposta à dos velhos gregos Platão, que preferia o debate verbal à escrita, e Sócrates, que nunca escreveu nada.

Dizem que, no seu auge, a biblioteca de Alexandria chegou a ter meio milhão de livros, lembrando que alguns livros eram constituídos por vários rolos. Eram acessíveis ao grande público mas principalmente a escolásticos e à nobreza. (É atraente imaginar a Cleópatra percorrendo as suas estantes atrás de alguma coisa leve para ler no fim de semana).

Mas, acima de tudo, a biblioteca contribuiu para transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico e da civilização do Mediterrâneo, uma inspiração para outros povos. Compare-se isto com o poder da Internet de atravessar fronteiras e criar comunidades de informação e conhecimento com uma só língua.

No fim Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo. do qual a biblioteca era o maior exemplo. Os diferentes grupos atraídos pelo mix cultural e religioso da cidade entraram em conflito.

A presença de sucessivos poderes autoritários - ptolomaico, depois romano, bizantino e islâmico - evitou uma ruptura maior, mas não impediu a decadência da cidade. Há várias versões sobre o fim da biblioteca.

Uma culpa Júlio César, que precisando fugir do seu palácio e chegar até seus navios no porto teria incendiado tudo no caminho, inclusive a biblioteca.

Segundo outra versão, os grupos raciais e religiosos em confronto simplesmente a ignoraram, e a biblioteca morreu aos poucos, de descaso.

Se é verdade que a Internet uniu os manifestantes que derrubaram o Mubarak, resta saber até quando durará esta comunidade. A da biblioteca de Alexandria não resistiu.

Nenhum comentário: