terça-feira, 22 de fevereiro de 2011



22 de fevereiro de 2011 | N° 16619
J. A. PINHEIRO MACHADO - Interino


Um pequeno herói brasileiro

Uma biblioteca é uma caverna mágica, cheia de defuntos. E esses defuntos podem renascer, podem ser devolvidos à vida, quando abrimos suas páginas – escreveu Emerson, sempre citado por Borges, que adorava essa comparação.

Um desses defuntos renasceu em minha biblioteca na semana passada: o poema Carta a Stalingrado, de Carlos Drummond de Andrade, escrito no momento crucial da II Guerra, quando o avanço do exército nazista parecia irresistível, mas, de repente, parou na resistência da cidade russa de Stalingrado: “Saber que resistes, dá um enorme alento à alma desesperada e ao coração que duvida”.

Tirei esses versos do esquecimento da prateleira por causa de um jovem herói brasileiro que ganhou espaço no noticiário da semana passada: um bebê jogado pela mãe, de uma altura de quatro metros, num córrego de esgoto, logo depois de nascer, ainda com o cordão umbilical. Seu primeiro contato com a vida foi a iminência da morte e, como Stalingrado, resistiu com vigor. Incrivelmente, segurava um galho de árvore quando foi resgatado.

Enquanto o Jornal Nacional divulgava a notícia patética, a voz de Drummond ecoava nas páginas abertas do livro: “Uma criatura que não quer morrer e combate; contra o céu, a água, a criatura combate; contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate, e vence”.

A grandeza da condição humana tem dessas. Uma criança é capaz de resistir com a bravura de uma cidade em guerra: “Provavelmente, quando foi arrastado, ele ficou preso e conseguiu botar a mão, segurando o galho. A mãozinha segurava com força. Uma imagem que eu nunca vou esquecer. Na correnteza do valão, a pequena cabeça dele submergia debaixo d’água e emergia. Quando saía da água, ele chorava”, contou o policial militar Leandro Rocha.

A determinação com que se segurou no galho e o instinto de chorar quando sua cabeça emergia na correnteza alertaram as pessoas, entre elas o pedreiro Luiz Carlos Militão, que, num gesto à altura do pequeno herói que se debatia contra a morte, mergulhou nas águas para resgatá-lo. Logo chamaram o bebê de Moisés, “aquele que é salvo das águas”. No hospital, constatou-se uma infecção e, quando eu escrevia este texto, havia confiança na recuperação.

Nas páginas de O Ato e o Fato, livro de Carlos Heitor Cony que fala de resistência e luta pela liberdade, brilha a magnífica imagem de um náufrago perdido nas ondas, em meio à noite negra, alegoria perfeita do drama do pequeno Moisés: “Olhando os horizontes que o cercam, o náufrago não saberá de que lado surgirá a luz.

Mas espera. Sabe que a aurora, saída das águas, de repente ameaçará uma cor de dia. Essa espera justifica a sua luta e a sua sobre­vivência”.

O nosso pequeno náufrago em sua espera, aos prantos, agarrado a um galho, é uma lição de vida: é preciso ter abertos os olhos e a intenção de sobreviver, lembrando outro defunto de minha caverna mágica.

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