terça-feira, 1 de fevereiro de 2011



01 de fevereiro de 2011 | N° 16598
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Ensinar a imaginar

Quando comecei a dar aulas, tive a enorme sorte de ser contratado em um colégio ótimo, o Anchieta, e a fortuna melhor ainda de conviver com professores magníficos e experientes – eu fui uma espécie de mascote da 3ª série do então Segundo Grau, repartindo a mesa do cafezinho e a sala de reuniões com gente como Vítor Ripoll (Matemática), o Marcão Bueno (Biologia), o Carlos Alberto Gianotti (Física), o José Carlos Barbosa e o Diamarante Ferreira (Filosofia), e para mim mais que todos o Paulo Coimbra Guedes (Português). Isso começou em março de 1980, todos estavam vivos e querendo a redemocratização do país. Agora, o Ripoll, o Marcão e o Barbosa já se foram, quem diria.

Num dos primeiros encontros de professores, entrou em pauta falar sobre rotinas de aula. E o Paulo disse uma frase que poderia parecer uma arbitrariedade, mas é profundamente inteligente: ele contou que, sempre que lhe vinha à mente alguma história, um filme, uma exposição a que ele tivesse comparecido, um passeio, qualquer coisa interessante, não tinha dúvida – ele relatava para os alunos essa lembrança, contava o filme, comentava a exposição, etc. Mantinha o assunto da aula em tela principal, mas abria um desvio para a recordação emergente.

O Paulo já era analisado então, psicanalisado, quero dizer, e isso fazia muita diferença. (Se me perguntarem se um professor precisa se analisar como condição para lecionar, eu diria que sim, precisa: porque a análise é um método inteligente e eficaz de autoconhecimento, e nada como alguém que saiba de si para falar aos outros, para coordenar um grupo, para conduzir um processo complexo e maravilhoso como uma sala de aula.

Não digo análise ortodoxa, quatro vezes por semana ao longo de anos. Mas uma sessãozinha semanal por um par de anos já é um grande serviço.)

O que ele disse tem tudo a ver com o mecanismo da livre associação: nas sessões de análise freudiana, esses enganchamentos de um assunto em outro, essas lembranças que se associam sem nitidez mas com força, esses laços merecem atenção. Ali onde não há sentido óbvio, bem que pode residir uma ligação sutil e profunda, bastando pertinácia e clareza para buscá-la.

O que o Paulo sugeriu pode ser traduzido de modo mais singelo para o contexto da sala de aula, especificamente nas aulas de línguas, humanidades, arte, cultura: essas associações, trazidas à tona, criam espaços para a imaginação, que é, dos elementos que compõem a leitura, um dos menos ensináveis e um dos mais importantes.

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