segunda-feira, 2 de junho de 2008


ALDO PEREIRA

Citius, altius, fortius, sollertius, lucrosius*

O COI deveria demonstrar quanto ao comercialismo da Olimpíada o mesmo zelo que recomenda à isenção ideológica do torneio

SEM REGRA não há jogo. Nas olimpíadas da antiga Grécia, disputadas entre os séculos 8 a.C. e 4 d.C., juízes multavam infratores do regulamento. A renda das multas custeava estátuas de Zeus com o nome do "patrocinador" inscrito no pedestal.

Colocados à beira do acesso ao recinto das provas, os ídolos valiam por tácitas advertências aos participantes. A regra mais geral era a paz: a temporada olímpica impunha trégua a cidades beligerantes e salvo-conduto aos guerreiros.

Hoje, segundo o regra 23 da Carta Olímpica, parágrafo 2º, alínea 2.1 a 2.3, atletas e dirigentes que transgridam o regulamento da competição ficam sujeitos a exclusão temporária ou permanente das Olimpíadas, anulação de todos os resultados que tiverem obtido e devolução compulsória de respectivos diplomas e medalhas.

Já a regra 51 prescreve no parágrafo 3º que não se permitirá em recinto olímpico "nenhuma espécie de propaganda política, religiosa ou racial".

O texto de aplicação da regra especifica que a determinação se aplica a tudo que apareça em "pessoas, uniformes, acessórios ou, mais genericamente, em qualquer artigo de vestimenta ou equipamento" usado por atletas ou quaisquer outros participantes.

Para gente alistada em alguma causa, é compreensivelmente tentadora a oportunidade de buscar adeptos numa audiência mundial que se prevê superior a 4 bilhões de telespectadores. Mas esses devotos deveriam ponderar a contradição de reclamar "direitos" mediante intrusão nos direitos de 6,7 bilhões. Isto é, o direito de toda a humanidade à paz e à concórdia fraternas que o espírito olímpico simboliza.

Nem será preciso evocar a inocuidade de boicotes e protestos em Melbourne (1956), Montreal (1976), Moscou (1980) e Los Angeles (1984), que só tiveram por efeito permanente a destruição de carreiras e sonhos de atletas.

Tampouco vêm ao caso possíveis méritos ou deméritos da causa tibetana, ou palestina, ou tchetchena, nem a procedência de protestos contra o despudor de celebridades ou contra a preferência do papa por sapatos vermelhos. Simplesmente, Olimpíada não é foro para tais confrontos de opinião.

O COI (Comitê Olímpico Internacional) deveria também demonstrar em relação ao crescente comercialismo das Olimpíadas o mesmo zelo que recomenda à isenção ideológica do torneio.

Quando, no contexto dos incidentes de março último no Tibete, a palavra "boicote" estalou na mídia e em suítes executivas de grandes multinacionais, a Adidas tropeçou, o McDonald's engasgou, a Volkswagen derrapou e a Coca-Cola gelou: essas gigantescas corporações comprometeram centenas de milhões de dólares em patrocínios relacionados com o evento.

Sim, outras Olimpíadas tiveram sucesso no passado sem o concurso dessa corruptora metamorfose de todos os esportes em show business. Mas chamar a atenção dos dirigentes olímpicos para o passado provavelmente só os fará pensar se já não é hora de reescrever seu anacrônico lema olímpico.

*A evanescente casta de estudantes da gramática latina notará nesses termos flexões de grau aumentativo de três advérbios de modo que respectivamente são, no grau positivo:

1) "cito" ("velozmente", advérbio irregular, não derivado de adjetivo);

2) "alte", derivado do adjetivo "altus", que pode significar "alto", "antigo", "clássico", "grande", "maduro", "nobre", "profundo" ou "secreto"; aliás, embora válida no contexto olímpico, a tradução usual, "mais alto", dissipa ricas conotações figuradas, sobretudo por "alto" ser aqui advérbio, não adjetivo; 3) "fortiter" (advérbio derivado do adjetivo "fortis", que significa "forte").

Latinistas também advertirão que "altius" e "fortius", aumentativos de advérbios, não devem ser confundidos com aumentativos dos adjetivos "altus" e "fortis", que são, respectivamente, "altior" e "fortior" (não existe "citior", já que não existem adjetivos como "citus" nem "citis").

"Sollertius", também flexão aumentativa, deriva de adjetivo imparissílabo da terceira declinação, "sollers, sollertis", que tanto se pode traduzir como "habilidoso" quanto como "trapaceiro", "velhaco".

"Lucrosius" é flexão aumentativa adverbial derivada do adjetivo "lucrosum" (forma neutra, caso acusativo, do adjetivo "lucrosus" -"lucrativo", "proveitoso").

Com o francês e o inglês como línguas oficiais do COI, já temos o dobro -"pardon, Madame"- do que hoje seria necessário. Felizmente, contiveram o latim no lema, o que bem vale um suspiro: "Deo gratias!".

ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha .
aldopereira.argumento@uol.com.br

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