sexta-feira, 13 de junho de 2008



13 de junho de 2008
N° 15631 David Coimbra


A primeira palavra

Meu filhinho Bernardo ainda não completou 10 meses. Não fala nada, nem papai, nem mamãe. Só abu:

- Abu. Abu. Mas fiz questão de ensinar-lhe o significado de uma palavra. A primeira peça do vocabulário do meu filhinho é:

Não. Quando ele tenta pegar algo que não deve, olho no fundo de seus olhinhos pretos e digo: - Bernardo: não. E tiro o objeto da sua frente.

Na primeira vez, ele ficou magoado. Verteu lágrimas de empapar o carpete. Na segunda, chorou de novo, só que menos. Na terceira foi só um lamento ressentido, acompanhado de um comentário mais ressentido ainda:

- Abu. Agora ele só faz um muxoxo, que nenês também fazem muxoxo.

Sei o que ele pretendia com seus primeiros protestos: pretendia me testar. Descobrir a localização precisa dos seus limites. Todos fazem assim: nenês com nove meses e meio, velhos lobos da imprensa, namoradas de minissaia, amigos de infância. E nós também, eu e você. E os grandes grupos que formam a comunidade, da mesma forma.

No Brasil, o governo militar confinou a sociedade civil em limites claustrofóbicos durante 20 anos. Com a volta da democracia, as fronteiras se estenderam até onde a vista não alcança. E aí está fincado o problema: quando as pessoas não enxergam os limites, não sabem quando parar.

É natural que, depois de tanto tempo de repressão, ao finalmente experimentar a sensação de liberdade, os movimentos sociais cometam excessos, e os cometem - há quem invada prédios públicos e privados, há quem bloqueie estradas, quem deprede e destrua, há até quem roube. Usam de violência, enfim, e a violência é sempre ruim.

Os movimentos sociais precisam se manifestar, caso contrário se extinguem. Mas também têm de ater-se aos seus limites. No caso, o limite é a lei, palavra repetida amiúde pelo novo comandante da Brigada, o coronel Mendes. Lei.

O coronel enfatiza que todos têm de se movimentar nas fronteiras da lei. É assim que é. Todos têm que, de vez em quando, ouvir aquela palavrinha que até um nenê é capaz de compreender: não.

t Gravamos o Café TVCOM desta semana no Theatro São Pedro. Antes do programa, fiquei conversando com a Dona Eva. Ela falava da trajetória de 150 anos do teatro, mostrava-me as antigas fotos da reforma do prédio e lembrei, tinha que lembrar:

- O açougueiro vinha aqui, Dona Eva. Ela sorriu: - Vinha.

Sabia a quem me referia. A José Ramos, o autor dos crimes da Rua do Arvoredo. De fato, Ramos executava suas vítimas, desossava-as, moía suas carnes, com elas preparava lingüiças saborosas e, depois da faina, tomava um demorado banho de tina, perfumava-se todo e ia, cheiroso, assistir aos concertos no São Pedro.

Ramos bebia das melodias e se emocionava às lágrimas. Voltava para casa enlevado pela arte, pronto para mais uma morte.

Tal aconteceu em 1863, cinco anos após a inauguração do teatro, numa época em que Porto Alegre não passava de uma vila com 20 mil habitantes.

Pois foi esse lugarejo atrasado que levantou o São Pedro, uma das mais deslumbrantes casas de espetáculo do Brasil. Não há como pisar naquele soalho venerando sem pensar em quantos personagens reais e fictícios passaram por lá neste século e meio de história.

E sem lembrar que aquilo tudo só continua de pé, só continua existindo, graças a ela, Dona Eva. Que obra de tantas vidas, Dona Eva!

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