segunda-feira, 2 de junho de 2008



02 de junho de 2008
N° 15620 - Luiz Antonio de Assis Brasil


Palavras (33)

Escrever - Escrever um romance é tomar o arco de uma vida inventada e cortá-lo em dois pontos. Chamamos ao primeiro ponto de "Capítulo I" e, ao segundo, de "Fim" - The End.

Começo e fim: arbitrariedade, sonho, devaneio. Na vida e na história coletiva dos homens não há inícios. A vida de alguém não começa com o nascimento, mas antes, na multiplicação de uma célula.

Num método narcisista - como se ante um espelho - a célula se duplica, quadruplica, eleva-se à n potência, erige-se à condição de ser humano. Mas nem aí temos o começo, pois o átomo que forma meu pâncreas existe desde o big bang. E a vida de alguém não termina com a morte.

As células darão origem a matérias minerais e biológicas. A Revolução Francesa começa, em alguns manuais, com Rousseau e termina com a coroação de Napoleão Bonaparte. Assim os começos dos romances: são arbitrários.

A memória - Uma história de amor não tem começo. Isso apenas acontece na imaginação dos romancistas e nos cérebros apaixonados. "Amantes amentes": os amantes são loucos. O amor instantâneo tem a ver apenas com a preservação da espécie. O que depois sucede é misto de audácia, refinamento, diplomacia conjugal.

Uma história de amor também não tem fim. Ela permanece em algum lugar da memória, como uma impostura. Pascal, fragmento 262: Tudo que é incompreensível não deixa de existir. [Tout ce qui est incompréensible ne laisse pas d´être].

A personagem - Uma personagem não é uma pessoa.

A personagem surge no fio caprichoso de um lápis, são palavras. Palavras não constituem uma pessoa. Palavras são seres de existência convencional e utilitária. A natureza das palavras é ter mudada sua essência ao sabor das épocas. Já o ser humano é o mesmo desde sempre.

Uma personagem não é uma pessoa. Basta o autor escrever: "O imperador Júlio César foi assassinado", para que Júlio César se transforme numa personagem. O autor pode até voltar atrás e, por desfastio, escrever que Júlio César escapou ao punhal de Brutus. Será igualmente verdadeiro.

A ficção - Não são palavras: a cólica intestinal, a dificuldade em calçar um sapato, a eructação, o suor.

Um escritor passou a registrar seus dias, desde o amanhecer à noite. Foi um rosário de mal-estares. Passou então a inventar seus registros, fazendo-os agradáveis: amparados pela palavra, tornavam-se ficcionais, isto é: verdadeiros.

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