domingo, 1 de novembro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Indolores 

Feliz de quem não sente dor. Dor alguma. É o ponto de equilíbrio necessário para tudo o que fazemos na vida, vantagem prioritária diante de qualquer situação que se apresente. Nada se compara a este estado de plenitude, a esta sorte divina.

Caminhar sem sentir dor nas panturrilhas. Correr sem sentir dor no joelho. Dormir uma noite inteira sem ser despertado pelos incômodos da artrose. Percorrer sentada todo o trajeto do ônibus sem sentir dor nas costas. Ou viajar em pé, sem dor no ciático. Nem saber o que é ciático.

Comer algo bem gelado sem sentir dor de dente. Não arrancar com os dentes a pele em volta da unha. Não provocar feridas em si mesmo.

O ouvido não zunir. Não sentir dor de estômago. Não ficar enjoado em passeios de barco. Alguém por aí tem andado de barco? Nem sei se enjoo pode ser considerado dor. Dor é pedra no rim. Cálculo renal, o horror.

Tonturas, contraturas, queimaduras, fraturas: zero. Nem sinal. Há 300 dias sem quebrar um osso, sem encostar a mão no forno, sem prender o dedo na porta, sem ficar com a coluna torta.

Trabalhar sem sentir dor de cabeça. Assistir aos telejornais sem sentir dor de cabeça. Transar sem sentir dor de cabeça. Dor de cabeça nenhuma, nem como metáfora, nem como desculpa, nem de fato.

E tampouco sentir saudade, que machuca bastante também. Vontade de voltar para a rua é normal, mas a saudade de quem nunca voltará para nós é infernal (se não tiver grandes urgências lá fora, fique em casa só mais um pouquinho).

Não ser atacada por maus pensamentos. Não enxergar apenas o lado escuro da vida. Ter tido a bênção de nascer com a alma leve e despreocupada, mesmo tendo contas atrasadas para pagar e um futuro que amedronta. O destino é incerto, vá que no meio da estrada uma surpresa boa erga o braço e te peça uma carona.

Não estar profundamente triste. Nem desesperada.

Nenhum parente internado. Nenhuma briga em família. Nem mesmo um cisco no olho, um ombro enferrujado, um sonho perdido, uma angústia pelas manhãs, uns soluços à tardinha, nadinha, nadinha, e ainda por cima a conexão está funcionando direitinho, não tem caído, uma maravilha.

2020 se encaminha para o fim, e quem sobreviveu às estatísticas fatais não escapou de ser atropelado (ligeira ou drasticamente) pela excepcionalidade da situação. Alguém anotou a placa? Que pessoa afortunada a que estiver atravessando ilesa essa pandemia, sem sentir nenhuma espécie de dor, nenhum efeito psicossomático ou coisa que o valha. Ou tem um anjo da guarda danado de bom, ou ainda não entendeu nada.

MARTHA MEDEIROS

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