domingo, 1 de novembro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Leio, logo existo 

Era um domingo como todos os domingos de quem fica em casa, aquela mistura de inveja - vendo uma multidão a aproveitar o dia maravilhoso - e medo, sempre ele. A multidão que vai ao sol está tranquilíssima, mas quem se preocupa com o recolhimento responsável fica um tanto inquieto, para dizer o mínimo. E se os casos de covid crescem de novo, com tanta gente sem máscara e pegando seu bronze por aí?

Chega a ser injusto ter o Guaíba enfeitando a cidade e um pôr do sol de luxo como o nosso enquanto a bendita vacina não chegar. A tal vida vista da janela, um clássico desses dias.

Pois era mais um domingo e tudo indicava que o máximo de emoção seria um filme no streaming antes de dormir. Deus salve o streaming. Se só me sobrasse o Faustão para ver, o isolamento perderia mais uma alma. Eu iria correndo para a rua, e gritando. Foi quando recebi uma mensagem da Kelly Matos, que embora esteja sempre no ar na Rádio Gaúcha, ainda encontra tempo para alegrar as pessoas. Basta ver a dedicação dela com as crianças de várias instituições da cidade.

A Kelly mandou a foto de uma folha de caderno com uma anotação, escrita à mão, sobre um livro meu, o Macha. "Comecei a ler 1º de outubro 2020 e terminei 6 de outubro 2020". Logo abaixo da foto, a Kelly explicou que o resumo tinha sido feito por uma senhora, mãe de um amigo dela, que largou o colégio cedo e que, nessa quarentena, começou a ler.

Orgulhosamente, essa senhora está empilhando leituras. E eu fui saber mais sobre ela.

Maria Mengue Boff, de 76 anos, nasceu pelas mãos de uma parteira no interior de Três Cachoeiras, no Litoral Norte, parte da Serra. Parou de estudar aos 15 anos para ajudar a família, casou antes dos 20. Teve quatro filhos e ficou viúva muito cedo, o marido morreu de câncer. Trabalhava com pesticidas, esses que atualmente são liberados em grande variedade e quantidade, sem burocracia e sem preocupações com a saúde alheia.

Fato é que a dona Maria criou os quatro filhos sozinha, dando duro na roça. Vinte anos mais tarde, reencontrou um amigo da adolescência e os dois se apaixonaram. Quando ela tinha 43 anos, nasceu o amigo da Kelly. Que vem a ser o Tiago Boff, repórter do programa do Macedo, que sempre descobre alguma humanidade para contar ao microfone. Esperança de um dia um pouco menos pesado para os ouvintes.

A dona Maria, que nunca teve o hábito de ler, descobriu os livros nessa quarentena. E anota, com cuidado, cada título. Primeiro livro: A Culpa É das Estrelas. Segundo livro: No Colo dos Anjos. Terceiro livro: A Tristeza Pode Esperar. Quarto livro: Querido Edward. Quinto livro: Lenços da Esperança. Sexto livro: Macha. Sétimo livro: Minha Adorável Esposa.

A dona Maria me lembrou da dona Vera, senhora que trabalhava uma vez por semana aqui em casa. Com a pandemia, faz meses que não nos vemos. Moradora de Gravataí, a dona Vera levava sempre um livro na bolsa para ler no ônibus. Não por acaso, é uma mulher maravilhosa. Assim como a Maria.

A Kelly Matos me disse que a dona Maria é incrível. Para Tiago, o filho, é o melhor exemplo da vida. Mas eu entendi mesmo que ela é uma unanimidade quando a Mariana Ceccon, namorada do Tiago, que a gente também ouve no programa do Macedo (eita, casal que acorda cedo), me disse: a minha sogra é maravilhosa.

A dona Maria garante que, agora que pegou gosto, não vai mais parar de ler. Amigos autores que quiserem enviar seus livros de presente para ela, fiquem à vontade. É só deixar para o Tiago ou a Mariana na portaria da Rádio Gaúcha.

E foi assim que um domingo que não prometia muito terminou feliz.

Que venha o próximo.

CLAUDIA TAJES

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