06 DE MARÇO DE 2023
CARPINEJAR
Apóstolo Paulo do Cartum
Sentiremos saudade do que nunca mais será desenhado pelo Paulo Caruso. Afinal, o paulistano foi quem melhor retratou o nosso último meio século.
As folhas ficarão órfãs. As canetas vão secar sua tinta. Os convidados do Roda Viva não terão mais a alegria da reprise de suas histórias coloridas feitas na hora. Durante mais de 35 anos, ele realizou mais de 2 mil charges em tempo real no programa. Não há antecedente na história da TV brasileira.
Conseguia ser rápido e preciso simultaneamente, numa espécie de psicografia das expressões faciais. Ele entrevistava o convidado paralelamente em sua bancada muda, com o registro das frases polêmicas. Muitas vezes, emparedava as personalidades em suas próprias mentiras. Nada escapava de sua atenção altamente politizada e bem-informada.
Paulo Caruso se despediu aos 73 anos, depois de sua luta contra o câncer. Seu irmão gêmeo, Chico Caruso, era o Rio de Janeiro. Paulo era a capital paulista. Ambos se completavam na cartografia dos cartuns. Com o seu mano, empreendeu shows de paródias e gravou discos.
Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), preferiu seguir a carreira da geometria das cores vibrantes. O fundo expressionista dos seus desenhos, que traduziam as turbulências políticas do país, contrastava com as caricaturas de traços firmes e minuciosos de seus modelos.
Da ponta do seu lápis, fotografava o nosso caos, as nossas incoerências, os desmandos da nossa política assistencialista. Ele foi nosso Otto Dix do regime militar com o semanário de humor O Pasquim, ícone da resistência à censura, em um time que incluía a nata do grafismo nacional, com nomes como Ziraldo, Jaguar, Henfil, Millôr Fernandes, Fortuna e Reinaldo Figueiredo.
Como o alemão Dix na Primeira Guerra Mundial, artista que denunciou a maneira com que os ex-soldados feridos e aleijados estavam sendo tratados na Alemanha, Paulo expunha a pobreza por trás da aparente ordem e repressão antidemocrática.
Largamente homenageado, recebeu o Troféu HQ Mix e o prêmio de melhor desenhista da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Organizou o Salão de Piracicaba, revelando talentos. Atuou nos principais veículos da imprensa, entre eles, Isto É, Jornal do Brasil, Época, Folha de S. Paulo e Veja, além de colaborar com publicações especializadas em humor, como Circo, Chiclete com Banana e Geraldão.
Avenida Brasil tornou-se uma de suas colunas mais tradicionais, na arte engenhosa de transferir para a rua tudo o que se fazia de escondido nos gabinetes.
Um dos fatos curiosos de sua biografia é que ele começou a desenhar para lutar contra a morte. Havia em sua família a crendice popular de que um dos gêmeos morreria cedo. Com medo de que a superstição virasse verdade, a mãe mantinha os filhos o máximo possível dentro de casa. Para distraí-los, distribuiu lápis e cadernos. Os irmãos passavam o dia desenhando, longe do futebol e das brincadeiras da calçada, inventando um mundo alternativo pelos traços da solidão a dois. Sem querer, criaram o antídoto do envelhecimento. Sempre serão jovens para as novas gerações.
Paulo imortalizou-se de tanto sonhar na sua prancheta e combater os maremotos de nossos pesadelos.
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