quinta-feira, 16 de março de 2023


16 DE MARÇO DE 2023
O PRAZER DAS PALAVRAS

Ráquer

A leitora Helena L. anda preocupada com o futuro da palavra hacker. Pergunta ela: "Professor, como vai ficar este vocábulo quando ele for aportuguesado? Seria raquer? É muito feio!".

Minha cara Helena, ainda não vi alguém empregar seu aportuguesamento, mas não é impossível que isso aconteça, como tu mesma sugeres na pergunta. Afinal, este é o destino habitual de muitas palavras estrangeiras que aparecem por aqui: aquelas que são úteis ou realmente indispensáveis passam a fazer parte de nossa casa, assumindo as mesmas feições e a mesma roupagem das palavras nativas.

Este processo de importação linguística, que para mim sempre será uma das características mais fascinantes do Português, parece seguir o mesmo espírito presente no Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade: aqui se deglutem e se digerem tão completamente as formas estrangeiras que logo, logo torna-se praticamente impossível notar o seu caráter forasteiro. Por exemplo, notar o DNA francês em croissant, champignon, mignon ou petit gâteau é fácil - mas poucos suspeitariam que cocar, envelope, caíque e quinquilharia tenham vindo do mesmo idioma, onde são, respectivamente, "cocarde", "enveloppe", "caïque" e "quincaillerie".

Agora, concordo em gênero, número e caso com a tua opinião: ráquer (o acento é necessário, por ser uma paroxítona terminada em -R, como dólar ou éter) - ráquer, repito, é muito feio! Esse critério estético não é desprezível, como acham aqueles que vivem espancando o bom Português; ele é o responsável por retardar - se não impedir - o processo de aportuguesamento de muitas palavras estrangeiras que estão na fila. Os termos franceses que listei acima, por exemplo, entrariam como champinhom, croassã, minhom ou petigatô, e por enquanto nossos ouvidos e nossos olhos ainda não se acostumaram à ideia.

Nota bem: por enquanto. Não posso condenar este processo de nacionalização ortográfica; ele é essencialmente democrático, permitindo que qualquer falante alfabetizado reconheça e pronuncie vocábulos usuais da fala comum, como time ("team"), toalete ("toilette"), nhoque (gnocchi) sem precisar de um diploma de um curso de línguas. No caso de hacker, o aportuguesamento facilita muito a padronização da pronúncia (muita gente não sabe que aquele H indica um som aspirado) e também a formação confortável de um verbo derivado, hoje tão conjugado no Brasil. Convenhamos que a manchete "Raquearam o computador da CBF" ficaria muito bizarra se empregássemos "hackearam".

Outra Elena - desta vez sem o H, como é no Italiano - escreve de São Paulo para tirar uma teima. Ela também é ouvinte do Noites Gregas e aproveitou o Instagram para mandar sua dúvida. "Profe, eu achava que o único diminutivo da palavra texto era textinho, mas meus amigos da faculdade afirmam que também poderia ser testículo. Eu nunca tinha ouvido falar nisso, mas eles estão vários semestres mais adiantados do que eu e juram que o professor de Filologia Românica falou nisso quando explicou em aula o sufixo -ículo. Acho que estão me passando a conversa. Eles estão de brincadeira, não é?".

Prezada Elena, teu instinto está bem afiado: claro que é piada! Aliás, uma piada tão antiga que já era famosa no meu tempo da quinta série - a famosa idade em que mais viceja a malícia verbal e os duplos sentidos fesceninos. Eram tempos em que encontrar um palavrão registrado no dicionário constituía um achado digno de ser compartilhado com os comparsas, tempos em que perguntávamos às meninas da sala qual era o aumentativo de tese (para sair correndo, às gargalhadas, quando elas inocentemente respondiam tesona ou tesão), tempos em que vivíamos sempre alerta para não cair distraidamente na armadilha do Mário, aquele que vivia atrás do armário... Nós nos divertíamos com bobagens assim, mas tínhamos apenas onze anos...

O diminutivo de texto é textinho ou textozinho, como quiseres, mas jamais testículo, pai, isso sim, da testosterona. Aquele X de texto está ali porque ele pertence a uma velha e nobre linhagem: é irmão de têxtil e textura, já que um texto nada mais é do que uma trama... Como suspeitavas, essa história toda não passa de um bem-humorado trote de veteranos.

CLÁUDIO MORENO

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