sábado, 11 de março de 2023



10/03/2023 - 18h00min
Francisco Marshall

De Mulieribus

Por que muitos homens, talvez a maioria, seguem desdenhando o valor das mulheres nas partilhas da vida social?

Na aurora da modernidade, em 1501, o humanista italiano Mario Equicola (1470-1525) publicou em Ferrara o livro De Mulieribus (Sobre as Mulheres), um dos primeiros tratados feministas da história. Dedicada a uma amiga de Isabella d’Este (1474-1539), esta obra defende a completa igualdade entre homens e mulheres e declara que a injusta disparidade entre os sexos decorre da educação e da cultura. As diferenças anatômicas, diz Equicola, devem-se unicamente à diversa função reprodutória de homens e mulheres, sem qualquer conotação moral: inter sexus non est diversitas – entre os sexos não há diferenças, arremata o autor. A questão que instigou este humanista segue viva: por que muitos homens, talvez a maioria, seguem desdenhando o valor das mulheres nas partilhas da vida social?

Isabella d’Este, a Marquesa de Mântua, foi belo exemplo dos argumentos de seu amigo Equícola: educada com literatura clássica e ávida por conhecimento, tornou-se figura de proa, excelente musicista, inovadora na dança e na moda, mas, sobretudo, diplomata muito arguta e ótima governante, nos períodos de cativeiro do marido Francesco II Gonzaga (de 1509 a 1512) e na infância de seu filho Federico, após 1519. Isabella liderou as forças militares e repeliu invasores, em um governo admirado por todos os seus contemporâneos. 

São famosas suas cartas e bem conhecido seu apoio às artes e ciências. Ao retornar do cativeiro em Veneza, Francesco II injuriou-se ao saber que o governo de sua esposa fora muito melhor do que o dele, o que deu início à cisão definitiva do casal, até a morte do marquês, em 1519. Mulher culta, sábia e poderosa, Isabella realizou na Europa moderna o que Aspásia de Mileto (nascida em 470 a.C.) lançou no século V a.C. em Atenas, ao lastrear a filosofia de Sócrates e educar e aconselhar o maior líder da democracia, seu amado Péricles (495-429 a.C.). 

Naquela mesma era e cidade, o comediante Aristófanes (447-385 a.C.) especulou ao menos duas vezes com mulheres no poder, na célebre comédia Lisístrata (411 a.C.), em que a protagonista lidera uma greve sexual para obrigar os homens guerreiros de Atenas e Esparta a fazerem a paz, e em Assembleia (ou Revolução) das Mulheres (392 a.C.), onde representa um Estado de bem-estar social e comunismo avant la lettre, liderado por fêmeas insurrectas. 

Na era moderna, a utopia feminista aparece primeiro na obra da poetisa e filósofa Cristina de Pisano (1364-1430), que publicou em 1405 A Cidade das Mulheres, em que responde à misoginia de Giovanni Boccaccio (1313-1375) em sua coletânea De Mulieribus Claris (Sobre Mulheres Famosas), de 1362, e descreve uma sociedade matriarcal regida pela razão e pelas virtudes de espírito, e não pela nobreza de nascimento ou pela força.

Essas literaturas deram lastro à Querelle des Femmes – a disputa das mulheres, um debate vencido desde o início pelo argumento feminino, mas que se estende por séculos até a atualidade. Mais do que história do feminismo, essa memória dá vigor a questão sempre vital: o que temem os homens covardes que desdenham o valor das mulheres?

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