15 DE MARÇO DE 2023
CARPINEJAR
Imprescindíveis garis
Uma paralisação capaz de destruir uma cidade é a dos garis. Talvez seja a greve mais contundente, a que mostra o tamanho do nosso lixo. Alguns dias sem coleta já desfiguram um bairro, com sacos rasgados por cachorros, sacolas reviradas com produtos jogados no meio-fio, nuvens de insetos e um odor penetrante de chorume.
É uma situação sem controle. Moradores de Santa Bárbara e Americana, no município de Alvorada, ficaram uma semana sem o serviço do caminhão, e já foi uma avalanche de ligações para a Rádio Gaúcha pedindo providências para a prefeitura, que notificou a empresa responsável pela limpeza.
O paradoxo é que os servidores que garantem a nossa normalidade são os que têm os salários mais baixos no quadro municipal. É uma inversão de importância. Um gari em Porto Alegre ganha R$ 1.312,61 (média do piso salarial), podendo atingir o teto salarial na carreira de R$ 1.714,48, para uma jornada de trabalho de 44 horas semanais.
Se eles são tão vitais, deveriam ser melhor renumerados. Mas como é uma categoria invisível aos olhos, subterrânea no nosso cotidiano, não tem o seu devido reconhecimento. Não passam somente quando estamos dormindo. Nunca os enxergamos, como se fossem sempre noturnos. Por mais que o uniforme chame atenção com seu laranja de Van Gogh.
Só são visíveis quando param de trabalhar. Se tudo permanece em ordem, acabam esquecidos, sem recompensa, sem elogio, sem viver o glamour de heróis por sanar os nossos restos. Correm 10 quilômetros por dia, cada um responsável por algumas toneladas da remessa de material na prensa do caminhão, esgueirando-se entre obstáculos e subindo nas traseiras do veículo em movimento. Juro que não entendo como, expostos a condições insalubres, não desfrutam de mais direitos.
Diariamente, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) recolhe nas residências cerca de 1.126 toneladas de lixo. Se o atendimento falhar por dois dias, teremos 2 mil toneladas impedindo a saída dos carros das suas garagens, facilitando o entupimento das bocas de lobo com as chuvas e acumulando detritos para o surgimento de baratas e ratos. Será um cataclismo humano.
Atualmente, Paris está imprópria para o turismo, sitiada, revivendo o quadro civilizacional de caos da Segunda Guerra Mundial, quando foi invadida e bombardeada.
A Cidade Luz hoje é sombra nefasta de abandono pelos milhares e milhares de sacos de lixo que mancham os postais dos Jardins das Tulherias, do Montmartre, da Champs-Élysées e dos arredores da Torre Eiffel. Até as centrais de incineração estão paradas.
Cerca de 5,4 mil toneladas de resíduos não foram recolhidas devido ao protesto dos garis contra a reforma da Previdência. O projeto de lei, com aval do presidente da França, Emmanuel Macron, busca aumentar a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos a partir de 2030.
Eu estive em Buenos Aires em outubro de 2010, na maior greve dos lixeiros na Argentina. Tinha ido comemorar o meu aniversário. Ali, pude perceber o quanto a suspensão da recolha arruína rapidamente a paisagem. A qualidade de vida despenca perigosamente, criando irritação e tumultos.
Era impossível caminhar pelas calçadas. Havia mais de 20 mil toneladas de sujeira dificultando o trânsito. Ruas recebiam trincheiras de sobras de comida, de papel higiênico, de caixas de papelão. A indigência atingia em cheio a cordialidade. Transeuntes se empurravam por não ter mais paciência com a convivência.
A capital argentina entrava em decomposição, com defuntos das geladeiras desovados no chão. Não tinha como dormir pelo cheiro de podre. Eu andava com a camisa levantada até a boca.
Parecia uma inundação de uma barragem. Jamais tinha presenciado um apocalipse igual. Pela primeira vez, via o quanto dependíamos dos garis. O quanto os nossos hábitos consumistas são predatórios e inconsequentes. Na coleta seletiva das emoções, não podemos nos esquecer de separar um pouco do nosso tempo para a gratidão com quem limpa a nossa bagunça de viver.
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