domingo, 26 de março de 2023


25 DE MARÇO DE 2023
LEANDRO KARNAL

Está na moda falar em um projeto pessoal. Seria uma decisão de cada um para um aperfeiçoamento e um salto estratégico adiante. Mesmo morando em um país tropical, vamos imaginar que entramos no outono bem definido (estação de maior recolhimento) e, em alguns lugares do país, diminuição gradativa da temperatura. Esta parte do ano é o momento ideal para um projeto de... leitura. Como veremos nesta breve crônica, um projeto é algo mais amplo do que a decisão boa de ler uma obra.

A Record lançou, em caixa elegante, quatro obras de Albert Camus: O Estrangeiro, A Peste, A Queda, O Mito de Sísifo. O argelino-francês é um dos maiores autores do século 20. Seu nome está associado ao existencialismo do seu amigo (e depois inimigo) Jean-Paul Sartre. Foi vencedor do Nobel de Literatura. Sua influência sobre o pensamento é enorme. Acho que não preciso mais fazer propaganda de Camus. Porém... e o projeto?

Ler um livro seminal como O Estrangeiro é uma excelente decisão. Curto, denso, é citado até em letra de rock do grupo The Cure: Killing an Arab. E... se você, além de ter conhecimento maior (lendo ou relendo) O Estrangeiro, decidisse encarar a tetralogia da caixa da Record? Isso daria uma visão mais densa e completa do autor e aumentaria, enormemente, seu repertório diante dos temas principais: liberdade, absurdo, sentido da vida. Quatro livros implicam, de fato, uma decisão-projeto.

Sim, um livro bom é um começo. Dois, do mesmo autor, são um avanço. Ler os mais densos de todos é, enfim, o projeto. Comece com o encarte excelente de Manuel da Costa Pinto. É texto cuidadoso e merecedor de visão atenta. Depois, o projeto segue com o prefácio do livro O Estrangeiro, do mesmo Manuel. Feito isso, surge o começo antológico da narrativa da personagem Mersault: "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ?Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.? Isso não esclarece nada, talvez tenha sido ontem" (tradução de Valerie Rumjanek). A frieza da narrativa na morte da mãe, como veremos, será decisiva no julgamento do caráter do protagonista. Se ele não chorou sequer no enterro da genitora, do que mais seria capaz?

Depois, pode seguir pela leitura d?A Queda. O "juiz-penitente" é menos debatido do que o romance anterior. A narrativa esconde belezas únicas. Seu projeto começou por um romance conhecido e foi a um menos famoso. Quanto tempo? Dois livros pequenos, talvez duas semanas ou um mês, dependendo da sua agenda.

Agora vem a ideia de projeto mesmo: você precisará de mais energia. Já conhecendo os dois romances, hora de encarar o mais volumoso: A Peste. Após (?) nossa pandemia, o texto ganhou novo significado. Como ficam os medos ancestrais de uma sociedade quando uma doença começa a dominar o cenário? A crise revela muito sobre aquela comunidade, como a covid trouxe nossas mazelas à luz do dia.

Recomendaria para o fim um texto lançado quase ao mesmo tempo d? O Estrangeiro... O Mito de Sísifo. Seu começo é conhecido: "Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio" (tradução de Ari Roitman). A partir do rei Sísifo e seu tormento no inferno, Camus faz uma reflexão extraordinária sobre a repetição das coisas, a monotonia e aquilo que Sartre tinha denominado um pouco antes: a náusea. Como encontrar forças para o cotidiano desgastante e sem sentido? Camus indica algumas respostas que podem ou não serem as suas.

Ao final dos livros, questões como o sentido da vida terão adquirido outro significado. Isso não é passar os olhos por textos, mas encarar de verdade um desafio. O prêmio do esforço? Você emergirá com outra consciência. Surgirão novas perguntas. Haverá um refinamento no seu olhar sobre as coisas se a leitura for cuidadosa.

Sempre achamos nosso momento mais difícil de todos. Camus nasceu quase ao mesmo tempo em que surgiu a Grande Guerra; cresceu como resistente ao avanço nazista na França e, por fim, acompanhou a polarização extrema (e violenta) causada pela guerra da sua Argélia natal contra a metrópole. Em números absolutos, cidadãos da primeira metade do século 20 viram mais horrores do que nós. Dessa fratura imensa, a filosofia e a literatura tiveram de dar uma resposta nova para os sentidos do humano, da liberdade e da vida.

Tudo o que escrevi diz respeito a ter um projeto (expressão bem ao gosto de Sartre). Livros que não serão cobrados em prova, que não serão condição para pagar os boletos do mês e que, apenas, redefinem nossa consciência. Se Camus não é sua praia, escolha outro ou outra. Que tal Raduan Nassar? Clarice Lispector? Yuval Harari? Chimamanda Ngozi Adichie? Orham Pamuk? Felicitas Hoppe? Annie Ernaux? Se você acha que as pessoas estão mais burras, é porque está lendo muito as mídias sociais, mas pouco os livros. O jardim dos que escrevem está florido, aguardando você colher algum prêmio. Chegou a hora!

Aprofunde-se, e o outono terá sido transformador. Ler muda sua estratégia no mundo. Conhecimento é poder. Ouse! Leia! Vamos "esperançar"!

LEANDRO KARNAL

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