10 DE MARÇO DE 2023
CARPINEJAR
Xerox das lembranças
Há profissões que estão desaparecendo. Antes eram pontos obrigatórios de frequência no bairro, como costureira e sapateiro. Eu ainda mantenho os endereços de meus profissionais prediletos de roupas e solas. São os únicos com os quais não barganho valores. Sem pestanejar, aceito o que estabelecem de preço no conserto de minhas peças. Nem faço cara feia porque já nasci com ela.
Sofro com a possibilidade de extinção dessas figuras. Adoráveis pedágios de convívio e de cordialidade de minha infância. Dificilmente comprávamos roupas ou sapatos - só numa situação de emergência, isto é, casamento ou velório de um familiar.
Nosso figurino vivia sendo remendado com tiras de couro. Nossos calçados atravessavam várias reencarnações com verniz e cola. Economizávamos ao máximo na indumentária. A caderneta de fiado no armazém tinha preferência no recebimento dos salários.
Acabei de descobrir que o xerox no prédio da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico), na UFRGS, onde cursei Jornalismo, acabou de fechar. O fotocopiador é também uma função ameaçada, em especial pelas fotos de celular e arquivos digitais.
A dobradinha de operadores - Abilio Paulo Martins, 73 anos, e Seno Luiz Klein, 64, os "tios do xerox", como os chamávamos carinhosamente - alega que, com aquilo que recebe por mês, não consegue nem mais pagar o aluguel do espaço (R$ 900). Vinha faturando R$ 30 ou R$ 40 por dia, menos do que informais flanelinhas.
Nos tempos áureos, eles atendiam a filas homéricas de dobrar o quarteirão. O tumulto sempre se instalava perto do sinal do início das atividades, devido ao proverbial atraso dos estudantes, que deixavam para ler o material de aula na última hora.
Eram rápidos em virar as páginas na fotocopiadora, em juntar a papelada, em organizá-las conforme a numeração. Agiam como malabaristas do circo de nossa pressa, grampeando centenas de folhas sem precisar olhar para o conteúdo. Guardo os seus semblantes severos, compenetrados e iluminados, minuto a minuto, pela luz das máquinas. Como quadros de Rembrandt: figuras claras no escuro dramático da nossa urgência.
Atualmente, são raros os alunos e educadores que procuram o serviço. Após 23 anos de trabalho, Abilio e Seno desistiram de continuar tentando. Foram discriminados pela tecnologia. A pandemia apenas acelerou a falência com as aulas virtuais e os PDFs compartilhados.
Em minha biblioteca, eu tenho várias obras encadernadas pelos sócios, com direito a reproduções de livros raros, esgotados e fora de circulação. Eles até faziam letras douradas na capa preta. Pena que não tenho como fazer xerox da minha saudade, cópia das minhas lembranças, para entregar à dupla. Ou talvez tenha feito agora.
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