terça-feira, 4 de outubro de 2016


04 de outubro de 2016 | N° 18651 
CARPINEJAR

Somos a própria casa

A casa reproduz a nossa insatisfação. Nunca estamos plenamente felizes. Sempre existe algo a reformar ou uma chance de colorir a planta original.

Você pode ter amplos espaços e não contar com uma garagem. Ou você pode usufruir de quartos gigantescos e, em contrapartida, suportar um banheiro apertado.

Existirá um limitador, um defeito que baixará o valor do imóvel. Há apartamentos majestosos sem paisagem nenhuma, por sua vez há quitinetes de envesgar o proprietário com belezas transbordando das janelas. Já vi apartamentos encravados em encantadoras áreas verdes, porém ameaçados pelo deslizamento. Mesmo as mansões desfrutam de contrariedades, ou são muito longe, ou excessivamente protegidas e afastadas do aeroporto.

Algo dentro da casa não corresponderá às expectativas, só que terminará compensado pelo resto. Assim como você deixa passar um traço falho em sua personalidade em nome do conjunto.

A casa é um jeito de aceitar a imperfeição.

Ou você pode melhorar o apartamento para vender ou melhorá-lo para morar – e isso já expõe a sua visão de mundo. Ou você pode ter apenas um cantinho para dormir ou cultivar a solidão com o capricho das estantes e das plantas.

Sou a minha casa, de algum jeito. Faz sentido. A cozinha é pequena e colada à área de serviço, traduzindo a minha inabilidade com as panelas. Queria desfrutar de uma estrutura de chef, mas me resignei a um espaço funcional. Por incrível que pareça, os amigos farejam o meu ponto fraco e preferem ocupar a estreita cozinha durante as festas. Nem reclamo, nem mais mando o povo sair.

Já a sala, em nítida oposição, é um estaleiro. Revela a minha intensa sociabilidade e alegria de anfitrião. Evidente que gosto do enfrentamento e dos longos debates, simbolizados pelos sofás laterais, um de frente ao outro. As visitas são obrigadas a se encarar.

O lar é a minha cara, extravasa o meu temperamento. Bate o sol de tarde clareando as mesas e cadeiras e destranco os janelões para receber ventos engarrafados de esquina.

É um apartamento de frente, e descubro quem chegou no portão mais espiando pelas cortinas do que atendendo ao interfone.

Moro numa biblioteca, entretanto não abro mão da nostalgia do campo. A churrasqueira está no centro do escritório, não na varanda como é o costume. Diz muito sobre o meu orgulho das tradições gaúchas. Enfeito as prateleiras com brinquedos de madeira e jogos antigos como pião e cinco-marias, o que indica que não abandonei completamente a infância. Os quartos são do mesmo tamanho – apesar da independência financeira, não consigo tirar vantagem sobre as crianças. Não abdico também de um longo corredor entre as portas, todo poeta que se preza possui uma galeria de fotos e quadros dedicados aos seus fantasmas.

Quando entro em uma casa, estou conhecendo a alma de alguém e não tiro nada do lugar. Vá que mexa em uma dor secreta e um nervo inflamado.

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