terça-feira, 1 de setembro de 2015



01 de setembro de 2015 | N° 18281 
DAVID COIMBRA

Os malditos


Baruch Spinoza já foi meu filósofo preferido, mesmo que a leitura de seu texto duro fosse uma dor. Compreendia-o melhor quando lia alguém que interpretava o que Spinoza queria dizer. Aí relia e concluía:

– Ah... Hoje, não sei qual é meu filósofo preferido. Gosto de trechos de uns e de trechos de outros. Um defeito. Ser definitivo cansa menos.

Mas o que gostaria de lembrar, em relação a Spinoza, é que ele era judeu-português. Isso é importante. Seu nome derivava da cidade de Espinosa, na Espanha, onde viveu. Naquele tempo, judeus que morassem na Península Ibérica tinham de fazer de conta que eram cristãos, ou a Santa Inquisição os purificava numa fogueira pia. A família de Spinoza, cansada de fingir e sem disposição para ser purificada, mudou-se para a Holanda, muito mais tolerante. Lá, eles assumiram sua religião e foram felizes, até que Spinoza começou a divulgar suas ideias.

Então, Spinoza, que já era um refugiado religioso, foi banido de sua própria religião. O texto de sua excomunhão tem um poder que vara séculos:

“Maldito seja de dia e de noite, maldito ao deitar e ao se levantar, maldito ao sair e ao entrar. O Senhor apagará seu nome de sob o sol e o expulsará por seus malefícios de todas as tribos de Israel. Ninguém pode falar-lhe diretamente ou por escrito, nem pode fazer-lhe favor algum ou estar sob o mesmo teto que ele nem dele se aproximar menos de quatro côvados ou ler qualquer documento que tenha escrito ou ditado”.

O anátema sofrido por Spinoza é o anátema de todos os refugiados do mundo, em todos os tempos. Porque ele foi banido de uma comunidade que, de certa forma, já era uma comunidade de banidos. E qual povo pode dizer que não foi banido algum dia?

Orgulhosos ingleses fugiram da intolerância religiosa e vieram se homiziar na costa leste americana, no século 17. Depois, entre o fim do século 19 e o começo do 20, nada menos do que 17 milhões de europeus correram da miséria e das guerras do Velho Continente e reconstruíram suas vidas nos Estados Unidos. Alemães e italianos atravessaram o Atlântico e se instalaram no sul do Brasil, poloneses fizeram o Paraná, os japoneses foram para São Paulo.

De uns tempos para cá, o Brasil tem recebido haitianos e congoleses, e nada menos do que 10 milhões de pessoas do mundo todo vivem irregularmente nos Estados Unidos, apesar dos rosnados xenófobos de Donald Trump.

Mas nada, nada pode ser tão pungente quanto as cenas que se passam nas franjas da Europa. Famílias de sírios e africanos implorando para ter apenas a chance de viver em paz. Aquelas crianças chorando, aqueles homens rastejando, as mulheres desesperadas, como a sábia Europa pode se negar a socorrê-los?

Outro grande filósofo, Schopenhauer, dizia que o ser humano só se sublima quando sente compaixão, e só sente compaixão quando se coloca no lugar do outro. Como se colocar no lugar dessa gente que grita nas fronteiras da Europa? Pense em Spinoza. Saiba que eles, hoje, são malditos de dia e malditos de noite, malditos ao deitar e malditos ao se levantar, malditos ao sair e malditos ao entrar. Malditos. São só tristes malditos. Esperando que a humanidade lhes estenda a mão.

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