23
de maio de 2015 | N° 18171
CLÁUDIA
LAITANO
O circo e o
shopping
A
lona colorida que abrigava a maioria das atividades da Jornada Nacional de
Literatura de Passo Fundo – até ser substituída, em 2013, por um anódino
pavilhão branco, mais barato – guardava a memória da origem provinciana e
periférica do evento. Simples e resiliente, como costumam ser os circos que vão
até os lugares aonde os musicais da Cláudia Raia não chegam, a Jornada nasceu
sem frescura, sem área VIP, sem joias balançando na primeira fila da plateia.
Seu
público, formado basicamente por professoras e estudantes – satisfeitos pelo
simples fato de estarem ali, saindo da rotina –, nunca se importou muito com o
barro nos sapatos ou as eventuais goteiras. O único luxo do Circo das Letras,
sabia-se, era o time de autores de primeira linha que conseguia atrair para
Passo Fundo. E mesmo os escritores não eram tratados a suíte presidencial e
champanha. Fosse o convidado um autor em início de carreira ou um velho
intelectual francês, comiam todos no mesmo bufezão.
Simples,
barulhenta, nem sempre muito propícia aos debates literários mais eruditos, a
Jornada era a cara do Brasil – não como ele é hoje ou como gostaria de ser
quando sonhava com índices chineses de crescimento, mas como poderia ter sido
se tivesse juízo.
1)
Por ter nascido fora da tutela do Estado, a partir da iniciativa de escritores
gaúchos e professores da UPF movidos pelo saudável espírito republicano de
chamar para si a responsabilidade de agir pela comunidade, em vez de apenas
esperar que papai (ou mamãe) governo tome todas as providências.
2)
Pela opção acertada de dar prioridade para a formação de leitores na escola,
porque é ali que as mudanças realmente acontecem.
3)
Por valorizar o professor e entender a conexão profunda entre educação de
qualidade e cultura. A Jornada era o evento de um Brasil que conhece seus
limites e sabe por onde o trabalho tem que começar.
Infelizmente,
a lógica que deu origem ao encontro, em 1981, no comecinho da redemocratização,
não foi a que prevaleceu no país. De forma especialmente aguda nos últimos
anos, a mentalidade que tomou conta do Brasil foi a de associar progresso a
consumo.
A
classe C está comprando TV de tela plana e smartphone? Então estamos bem. As
escolas públicas estão caindo aos pedaços? Bom, amanhã a gente pensa nisso.
Nesse Brasil do autoengano e da “gourmetização”, o evento literário mais
badalado é a Flip, que tem cenário de cartão-postal e público AA, e não a
Jornada, que está mais para quermesse de escola pública do que para casamento
da Preta Gil.
O
Brasil claramente escolheu o shopping como espaço sagrado, e não a escola. Ali
onde deveriam ser formados brasileiros capazes de pensar, trabalhar e viver em
grupo, há apenas vazio moral e desprestígio. Quis o destino (ou Eduardo
“Ricardo III” da Cunha) que o cancelamento da Jornada fosse anunciado no mesmo
dia em que o plenário da Câmara deu aval ao projeto de construção de um
shopping para os deputados – que, vejam só, deve custar aos cofres públicos
algumas centenas de Jornadas. E ainda dizem que o Brasil não é coerente.
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