quarta-feira, 27 de maio de 2015


27 de maio de 2015 | N° 18175
DAVID COIMBRA

Seja assassinado corretamente

Os Titãs estavam errados. Pobrezas são mais diferentes do que riquezas. Ser pobre na Alemanha é uma coisa. Vá ser pobre no interior da Síria, quero ver se você é macho.

No Brasil, o pobre tem sua quota de sofrimento, como sói acontecer com pobres, mas pelo menos ela vem cercada por uma aragem de santidade. O pobre, no Brasil, é pobrezinho, fica em geral entre a vítima e o herói. É por isso que Mujica, por levar uma vida simples, sem ambições materiais, gera tanta louvação entre brasileiros.

As pessoas se encantam: oh, ele anda de Fusca. Ei! Eu não tenho carro, não tenho relógio, nunca tive máquina fotográfica, meu celular, foi o Juninho quem me deu, praticamente não compro roupa, mas quem diz que, por essa razão, posso ser presidente do Uruguai?

Não, eu não teria capacidade para ser presidente do Uruguai, nem de nada além. Aí está uma coisa que nunca serei: um presidente. Fico triste. Queria ser um presidente.

O Mujica, sim, ele foi presidente, e parece ter sido bom. Então, é por isso que admiro o Mujica, não por ele andar de Fusca. Qualquer David pode andar de Fusca, mas você terá de ser um Mujica para ser presidente.

No Brasil, a pobreza tem certa beleza, o que até rende rima. Ao rico está reservada profunda antipatia, mas quem diz que o rico se importa com isso? Ele não está nem aí. Ele está no Caribe.

Agora, a classe média, sim. A classe média, no Brasil, é um caso diferente das outras classes médias. Porque, no Brasil, a classe média tem os ônus das outras classes médias, sem usufruir dos bônus. Em todos os países do mundo, é a classe média quem sustenta a economia, paga os impostos, consome e produz.

Você mede a justiça social de um país pelo tamanho da sua classe média. No Brasil, também. Mas, no Brasil, a classe média, chamada com desdém de “pequena burguesia”, é desprezada. Intelectuais do governo, como aquela professora da USP, proclamam: “Eu odeio a classe média!”, e um ex-presidente da República ri à grande ao ouvir isso.

A classe média paga impostos para a educação, a saúde e a segurança, e também escolas particulares, planos de saúde e vigilância privada. A classe média gasta em dobro, mas não deve reclamar, porque, supostamente, ela está se sacrificando em nome da felicidade dos pobres. É o que o governo alega. O governo é dos pobres, os pobres agora rodam em carros melhores do que o Fusca do Mujica, viajam de avião e fazem faculdade. Os pobres brasileiros são felizes. E a classe média, se não está contente, é egoísta.

A classe média não aprende a se resignar nem quando morre. Outro dia, um médico foi esfaqueado na Lagoa Rodrigo de Freitas porque um sujeito precisava da bicicleta que ele pedalava. Um latrocínio na Lagoa, à luz do sol, equivale a um na Times Square, na Fontana di Trevi, no Portão de Brandemburgo ou no pátio do Palácio de Buckingham.

Como reagiriam os Estados Unidos, a Itália, a Alemanha e a Inglaterra se isso ocorresse? Com escândalo, obviamente. Seria um absurdo impensável. Manchetes. Revolta. Afinal, se não existe segurança num lugar turístico desses, imagine no Harlem, na Suburra, no Mitte ou em Stratford? Um assassinato como o da Lagoa, em outros países, traumatizaria a população não pela vítima, mas pelo local em que ocorreu.

No Brasil, não. No Brasil, os intelectuais gritaram: “Por que não falam tanto assim dos mortos pobres dos morros?”.


É preciso ter cuidado, neste nosso país de paladinos intelectuais. No Brasil, você tem de ser assassinado na classe social certa.

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