17
de maio de 2015 | N° 18165
L.
F. VERISSIMO - As aventuras da família Brasil
A janela
Freud
escreveu em algum lugar que não existe nada mais parecido com a paranoia do que
a filosofia. Querendo dizer, acho eu, que a filosofia também vê uma trama por
trás de tudo. Assim como todo complexo é o sintoma de uma disfunção a ser
descoberta na análise, toda filosofia é uma tese conspiratória. Para a
filosofia, tudo que existe é a ponta de um iceberg, exceto, talvez, a ponta de
um iceberg, que deve ser outra coisa. Há uma lógica secreta na vida dos homens
e das nações. O retorno do reprimido freudiano é o eterno retorno nietzschiano
depois de uma análise.
Tirando
um exemplo do chapéu: quando fizeram um plebiscito para decidir que nome
deveria ter Leningrado, depois que Lenin caiu em desgraça, a maioria da
população escolheu São Petersburgo. Não quis nem Petrogrado, nome dado em 1914,
durante a I Guerra Mundial, quando, presume-se, a antipatia com santos era
grande.
A
população quis o santo e o “burgo” de volta à cidade que Pedro o Grande
construiu sobre um pântano para ser uma janela através da qual a Europa veria
como a Rússia se civilizava. O custo humano desse capricho foi terrível. Em The
Russia House, John le Carré escreveu que em nenhum outro lugar do mundo o
barbarismo se fez um monumento tão bonito.
A
sina da cidade é ser um símbolo. Era de São Petersburgo que os exilados da
União Soviética falavam quando falavam das delícias da vida antes da revolução.
Ela era a “capital da memória” de Nabokov, sua cidade natal, e pelo resto da
sua vida ele misturou seus mármores e seus canais e os verões idílicos nos seus
arredores com lembranças de infância, e com ressentimento.
O
retorno do reprimido, no caso, foi a tentativa de retomar o jardim dos prazeres
do qual o tempo e a História expulsaram a criança. A lógica secreta do
plebiscito foi a necessidade de anular o tempo e transformar Leningrado, de
novo, num símbolo de ocidentalização.
O
tempo fez outros símbolos do velho pântano. Lenin instalou seu quartel-general
num ex-colégio de moças da aristocracia local, que só falava francês em casa e
veraneava em Biarritz, antes de ser corrida para o exílio. A resistência da
cidade ao cerco alemão por quase dois anos, na II Guerra, empolgou o mundo. Mas
nada valeu tanto, para os que votaram pela mudança do nome da cidade, do que a
sua conotação de fracasso.
O
plebiscito serviu como um réquiem para a maior experiência de engenharia social
já feita, e o tempo não foi suficiente para suprimir o reprimido: Lenin, o
santo secular homenageado, não teve a força do outro santo. Se o que venceu foi
a nostalgia imperial, outro capricho ou a liberdade, depende da sua filosofia,
ou da sua paranoia. O fato é que pela cidade-janela se viu a outra grande
convulsão na alma russa depois da revolução, que foi o fim do comunismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário