sábado, 16 de maio de 2015


16 de maio de 2015 | N° 18164
CLAUDIA LAITANO

Hipercorreção

Aprendi com o professor Cláudio Moreno um conceito bastante útil para entender como erram os bem-intencionados. Quando Lady Kate diz “dinheiro eu tenho, só me falta-me o glamour”, seu esforço em falar a língua culta acaba redundando em uma hipercorreção.

“Não é qualquer pessoa que comete erros de hipercorreção; paradoxalmente, eles só atacam os falantes que têm certo grau de estudo, preocupados honestamente com o correto uso do idioma. Não deixa de ser uma ironia linguística: eu fico tão ansioso por evitar um erro para o qual fui alertado, que termino aplicando a regra onde não devia aplicar”, explica o professor no blog Sua Língua.

Vivemos o mais hipercorretivo dos tempos, talvez porque nunca tenha sido tão fácil manifestar descontentamento contra políticos, celebridades, professores, formadores de opinião... Tanta vontade de apontar o que está errado, às vezes, redunda na hipercorreção, o tal erro cometido por quem acredita que sabe mais do que realmente sabe e nem sempre percebe as contradições no próprio discurso. O hipercorretivo é aquele que condena a violência mandando linchar quem é violento, aponta a partidarização de todos os debates colocando a culpa no partido que não é o seu, defende a cultura propondo a eliminação imediata de todos os artistas de que não gosta ou que não entende.

A hipercorreção, porém, não está restrita ao ambiente ruidoso das redes sociais. Na universidade, ali mesmo onde o conhecimento deveria ser protegido e cultuado, inventou-se a “hipercorreção literária”, a leitura revisionista de livros e autores. Condena-se Monteiro Lobato por racismo, Nabokov por pedofilia, Hemingway por machismo.

A vítima mais recente é o poeta romano Ovídio, que viveu no início da Era Cristã. Alunos da Universidade de Columbia lançaram uma espécie de manifesto exigindo que os textos de Ovídio levem um carimbo alertando leitores distraídos de que a descrição de cenas de sequestro e estupro da mitologia grega pode ferir suscetibilidades. (Mas quem disse que provocar as nossas suscetibilidades não é exatamente uma das funções da literatura?)

Nem vivendo um milhão de anos uma pessoa poderia vislumbrar tantas visões de mundo diferentes quanto as que oferece uma boa biblioteca. Livros sofisticam nossa percepção do que nos cerca exatamente porque nos ajudam a enxergar a realidade sob múltiplas perspectivas no espaço e no tempo. Se a literatura é a narrativa da aventura humana neste planeta, nossas imperfeições, nossos erros de julgamento, nossos vícios não poderiam ficar de fora. E esse não é um defeito dos livros, mas provavelmente o maior dos seus méritos.


Esconder Monteiro Lobato no fundo da estante não vai diminuir o racismo no Brasil, assim como deixar de ler Ovídio não vai acabar com os casos de abuso sexual nas universidades. Pelo contrário. Não se corrige a realidade eliminando a sua representação, mas formar bons leitores talvez tenha algum efeito sobre o caráter. Tentar hipercorrigir a literatura dos temas “desconfortáveis” é como tentar curar a tristeza prescrevendo lobotomia.

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