12
de maio de 2015 | N° 18160
CARPINEJAR
Me tire daqui
Nunca
mais tinha dormido em Santa Maria depois da matança da boate Kiss, incêndio que
sacrificou 242 pessoas há dois anos, a maior parte jovens e adolescentes, que
terminaram presas numa cilada maquiavélica, impossível de fugir.
Nem
sei se deveria escrever algo tão pessoal, que expõe minhas crenças espíritas.
Passei a noite num hotel, satisfeito com a recepção do público e a palestra
lotada na Feira do Livro na última quinta.
Só
que não dormi. A princípio, jurei que estava preocupado com quem eu amo e já
ultrapassava a meia-noite para telefonar. Mandei mensagens aos familiares e não
obtive retorno. Não pretendia ser histérico – pressentimentos jamais são
levados a sério – e aguentei a ansiedade.
Mas,
quanto mais a noite avançava, não aquietava o meu espírito, não achava uma
posição para relaxar, liguei e desliguei a televisão, liguei e desliguei a
caixinha de música, iniciei e interrompi leitura de livros. Desceu em mim uma
angústia implacável. Não é que dei para chorar copiosamente do nada,
irrefreável, logo eu que não choro com facilidade? Chorei infinito. Cochilava e
chorava. Suspirava e chorava. Como se estivesse com Bluetooth emocional
emparelhado em uma data remota.
No
quarto absolutamente confortável, me enxergava emparedado, preso, encaixotado.
Tossia convulsivamente. Cuspia o ar que não vinha. A sensação de sufoco e
queimação se agravava, com um calor anormal no corpo para uma madrugada fria de
inverno lá fora. Abri a janela e não refrescava. Tirei as roupas e não
encontrava alívio.
Não
ardia em febre. Não sofria de asma. Não apresentava nenhum quadro gripal.
Estava bem de saúde. Porém me arrastava na cama, um cansaço indigente, próximo
do desmaio. A pele reagia a um sobrepeso invisível, suava absurdos e cheirava
forte.
Ao
fechar os olhos e tentar sonhar, várias vozes conversavam comigo, chat
multiplicando borbotões de janelas na tela do inconsciente. Não entendia
nenhuma delas, pela sobreposição dos timbres. Centenas de recados, gritos e
uivos ilegíveis – procurava ajudar e responder. Eu me esforçava para ouvir e
sofria do pânico de não alcançar a velocidade das falas: frenéticas,
constantes, passionais. Sem resultado, ajustava a atenção para aquele vendaval
de apelos, o equivalente a sintonizar uma estação de rádio fora de frequência.
Peguei papel e caneta com o propósito de anotar frases soltas e desconexas,
pena que, tamanho o desespero, não lembrava sequer de meu nome.
O
que qualquer um pode concluir é que experimentei um sofrimento paranormal. Não
se engane: sobrenatural é a impunidade até hoje da boate Kiss. Se não desfrutei
de um minuto de serenidade na vigência de uma lua, de uma simples lua em Santa
Maria, apesar de não ter perdido nenhum parente ou amigo próximo na tragédia,
como os pais das vítimas vão conseguir dormir?
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