24
de maio de 2015 | N° 18172
ANTONIO
PRATA
Um machado, comida pra
gato
Por vinte anos, trabalhei em casa: me trancava no
escritório e, escondido de mim mesmo – ou das tentações que poderiam me afastar
de mim mesmo, como a televisão, o telefone, a geladeira –, escrevia o que tinha
que escrever. Com dois filhos, porém, o meio de campo embolou um pouco e acabei
alugando uma sala comercial, na rua de baixo, em cima de um petshop. Poderia
falar maravilhas da minha sala comercial: a paz, o silêncio, a concentração
monástica que alcanço sem filhos, vizinhos ou internet. Hoje, porém, quero
falar do petshop, no térreo.
Não
tenho cachorro, gato ou periquito. Os bichos que entram lá em casa são todos do
tipo que se trata com Baygon ou – glória ao Senhor! – raquetinha elétrica. Daí
resulta que, todo dia – e pela primeira vez na vida – passo por uma loja onde
não há nada, absolutamente nada que eu queira comprar.
Note
que eu digo “queira comprar” e não “vá comprar”, pois meu consumismo é de
natureza meramente contemplativa. Acho que sou um voyeur. Olho encartes
publicitários nos jornais e faço compras mentais. Três quilos de bacalhau da
Noruega. Um fogão de seis bocas. Um Land Rover, em 160 vezes, sem juros. São
pequenos devaneios, no meio da tarde, sem nenhum compromisso com a realidade. É
como se apaixonar pela voz de uma cantora, no rádio, parado num sinal. Depois a
música acaba, o trânsito anda, a paixão se esfuma.
Digamos
que eu vá numa dessas enormes lojas de construção pra comprar, sei lá, mãos
francesas. Num corredor, me deparo com um machado. Meus olhos brilham. Um
machado de verdade! Cabo de madeira, lâmina vermelha com fio metálico, como nos
desenhos animados da minha infância. Custa duzentos reais. Eu tenho duzentos
reais. Eu não tenho um machado. O que eu faria com um machado? Sei lá. Vai que
cai uma árvore, na minha rua? Vai que pega fogo na casa da vizinha e ela,
apavorada, não consegue abrir a porta? Me vejo correndo pela rua, todo Bruce
Willys. Me vejo sendo carregado pelo povo, sob aplausos, e dando entrevistas
pra televisão.
Ando
mais um pouco, chego na seção de cordas. Há cordas de cânhamo, como as de um
navio pirata, cordas coloridas, como as de um alpinista. Quero levar trinta
metros dessa. Quarenta daquela. Cinquenta da outra. Tento justificar meu
desejo: deve haver alguma coisa na minha casa que precise ser amarrada. Não,
não há. Vou deixar no carro, então. Tenho certeza de que algum dia me depararei
com uma situação em que as cordas serão fundamentais. Não, não tenho certeza
nenhuma. Desisto das cordas.
Faz
uns anos, quebrei o pé. Na loja de produtos ortopédicos, enquanto esperava o
vendedor me trazer as muletas, me flagrei, atento, decidindo entre diferentes
próteses de quadril. “A vermelha parece mais sólida. Mas a azul, bom, a azul
talvez seja mais leve...”.
Já
comprei, mentalmente, jatos executivos, cubas pra pia, blocos de mármore, canos
de cobre, pés de cabra e moinhos eólicos. No petshop aqui embaixo, contudo,
nada me interessa. Todo dia, vejo com o canto dos olhos as embalagens coloridas
e sinto um vazio no peito. Whiskas sabor legumes, focinheiras, jaulinhas de
plástico, para levar bichos no avião. Não tenho cachorro, gato ou periquito.
Talvez, um dia, compre um machado.
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