terça-feira, 12 de maio de 2015


12 de maio de 2015 | N° 18160
DAVID COIMBRA

A bolinha de gude

Tenho um plano para ficar rico. Depende só de observar o japonês do quinto andar.

É que há 25 anos houve um cinematográfico roubo de obras de arte aqui em Boston. Homens disfarçados de policiais entraram num pequeno museu chamado Isabella Stewart Gardner e levaram quadros de Rembrandt, Manet, Vermeer e Flinck. O valor estimado das obras roubadas é de meio bilhão de dólares. Imagine o que dá para comprar de governistas com esse dinheiro.

Pois ocorre que o museu oferece recompensa de US$ 5 milhões a quem der pistas sólidas para recuperar os quadros, e suspeito do japonês do quinto. Sei que ele é interessado em arte, tem um comportamento estranho e mora na cidade há exatos 25 anos. Pode ser ele. Investigarei. Se for, entrego o japonês para o FBI, pego meus cinco pacotes e aí, garota, eu vou pra Califórnia, viver a vida sobre as ondas.

Cada vez que olho para aquele suspeitíssimo japonês no elevador, fico pensando no que motiva esses colecionadores de arte que compram quadros roubados. É algo que diz muito da natureza do ser humano.

Raciocine comigo: esse japonês que roubou os quadros, ele podia vê-los todos os dias, se quisesse, e quase de graça. Bastaria ir ao museu. Mas, não. Ele preferiu arquitetar um roubo espetacular, correr o risco de ser preso e gastar uma fortuna pagando seus asseclas, tudo para ter os quadros só para ele. E o “só” a que me refiro é “só” mesmo. Ele não pode mostrá-los para ninguém, ou admitirá o roubo.

O que é isso, se não o vil sentimento de posse? Aquela beleza é apenas sua e apenas você sabe disso. Nenhuma outra pessoa tem ideia de que você a possui, você não pode nem se gabar de tê-la.

Idêntico raciocínio faz o homem que mata a mulher que o abandonou. Ele diz:

– Se você não vai ser minha, não vai ser de mais ninguém!

Que sentimento mesquinho. Tenho, cá para mim, que devia ser o contrário. Queria que as pessoas que amo tivessem visto comigo as belezas que vi sozinho.

Um dia vi um gato caçando no terreno baldio que ficava ao lado da minha casa, no Parque Minuano. Não lembro o que ele caçava, mas lembro da elegância macia com que rastejava pela grama, totalmente atento aos movimentos da vítima. Era um gato amarelo, esguio, flexível como têm de ser os gatos. Já vi, também, uma curva morena de ombro de mulher. Ela estava de costas para mim, bem na minha frente, e a visão daquela omoplata reluzente do sol do verão brasileiro me absorveu tanto que não ouvi mais o que as outras pessoas falavam em volta. E, à noite, todas as noites, vejo meu filho dormindo. É comovente ver uma criança dormindo.

Quando tinha talvez a idade dele, do meu filho, tive nas mãos uma bolinha de gude que o meu amigo Nique ganhou. Ele veio correndo me mostrar. Tomei-a entre o indicador e o polegar. Era leitosa e brilhante, era azul, branca, amarela e vermelha, as cores se contorciam dentro dela e se misturavam feito serpentes e explodiam na superfície. Admirei-a por algum tempo e disse para o meu amigo:

– Como é bonita!

E ele olhou sorrindo para mim e respondeu:

– É tua também.


A bolinha de gude era linda, mas a frase do meu amigo foi muito mais. A vida fica mais bonita quando a beleza é dividida.

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