sábado, 23 de maio de 2015


23 de maio de 2015 | N° 18171
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Alvo

A ETIMOLOGIA é uma daquelas substâncias que devem ser consumidas com moderação, sob pena de provocar delírios

Uma estudante de Letras de Florianópolis, futura colega na luta contra a ignorância, está dando os últimos retoques em seu trabalho de conclusão – o famigerado TCC – e vem pedir minha opinião sobre um item que a preocupa: “Professor, estou hesitante quanto ao tratamento que vou dar aos dois valores do termo alvo, que, como o senhor sabe, tanto pode significar ‘branco’ quanto ‘ponto que se quer atingir’. São dois vocábulos distintos cuja forma coincide, como a manga do casaco e a manga da mangueira, ou é o mesmo vocábulo usado com significados diferentes? A etimologia pode ajudar aqui?”.

Pode, minha cara leitora, mas cum grano salis (o que, em vernáculo carinhoso, significa “com um pezinho atrás”), pois a etimologia é uma daquelas substâncias que devem ser consumidas com moderação, sob pena de provocar delírios. O teu alvo, por exemplo, lembra o Dr. Castro Lopes, gramático e latinista do Segundo Império, tratado ironicamente por Machado como “nosso ilustre patrício”.

Lá pelas tantas, Castro Lopes se põe a rir – e nós também – de um autor que explica a origem do vocábulo almoço como a soma do artigo árabe al mais morgen (“manhã”, em Alemão) e essen (“comer”, em Alemão)! Só rindo, mesmo! Rimos todos, mas por razões diferentes: nós, porque essa colagem cubista de segmentos de línguas diferentes soa como obra de maluco; o doutor, porque defende uma maluquice ainda maior: “Eu entendo que no vocábulo almoço entra o artigo árabe al, o advérbio latino mane (“de manhã”) e o verbo latino esse (“comer”)”.

Feita a advertência, vamos ao alvo – e já vou adiantando que se trata de uma única palavra com vários sentidos. Sua mãe é o Latim albus (“branco”), e alvo guarda este significado original, assim como os derivados alvor, alvorada, alba ou alva (“a primeira claridade”, o crepúsculo da manhã). Daí também sai o álbum (em Roma, tábua branqueada com gesso em que se expunham à leitura pública frases comemorativas, éditos dos pretores, posturas, anúncios, etc.).

Mais tarde, passou a se chamar de alvo “a folha de papel branco, com um círculo negro no meio, a que se atira com flechas ou armas de fogo” (Bluteau – 1728), ou “o ponto branco em geral onde se aponta o tiro” (Morais – 1789). Estava fechado o círculo, como se vê claramente no verbo alvejar, também polissêmico (os dois exemplos são de Euclides da Cunha): “Passou pela lagoa do Cipó, onde alvejavam ossadas, recordando os morticínios da expedição” e “Não se ouviu um tiro. Soldados alvejados à queima-roupa caíam por terra rugindo”.

Hás de perguntar, prezada leitora, o que tem tudo isso a ver com o Dr. Castro Lopes. Respondo: no retrato que dele se conhece podemos ver que usava um bigodão e uma mosca – para quem não sabe, aquele “tufo de pelos, apartados do restante da barba e localizados abaixo e bem ao centro do lábio inferior”. Ora, mosca lembrou “acertar na mosca”, que lembrou alvo, que lembrou que não é por acaso que esta coluna prega, no próprio título, a busca do prazer nas palavras...


*Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente aos sábados

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