domingo, 31 de maio de 2015

Miranda July diz que não se sente confortável com o marido e filho

Flavio Scorsato
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A cabeleira etérea de Miranda July me distrai. Quanto tempo ela passa no espelho para conseguir este visual delicadamente armado? Passa pó de arroz no rosto para deixar os olhos claros ainda mais em evidência? "Que jardim incrível", elogio, para quebrar o silêncio, enquanto entro em seu escritório, numa casa simples com panos brancos cobrindo as janelas. "Tenho um jardineiro que vem de vez em quando. É um sem-teto que mora pelo bairro", ela conta.

Como? O jardineiro misterioso do seu livro "O Primeiro Homem Mau" é de verdade? Procuro caramujos pelo chão de taquinhos, como os que tomam conta da sala da protagonista, mas ela me puxa para a realidade: "Não é como no livro. O que vem aqui é um morador de rua de verdade".

O universo de Miranda July, 41, se esconde e se revela em seus trabalhos. Imagino que, no meio de seus cachinhos, morem seus amigos imaginários e personagens esquisitões, todos prestes a saltar em seus filmes, contos e performances. Miranda é uma artista que não se deixa definir por uma plataforma.

Flavio Scorsato
A mais recente é sua estreia no romance de ficção, "O Primeiro Homem Mau" (sai em junho pela Companhia das Letras), no qual aborda temas recorrentes em suas obras, como solidão e devaneios sexuais, mas, desta vez, de forma tão profunda que as criações parecem mais reais do que nunca.
A narradora é Cheryl, uma mulher solitária que tem sua rotina balançada com a chegada a sua casa de uma hóspede loira e gostosona de 20 anos, Clee. Um mix violento de repulsa e atração norteia a relação das duas, e Cheryl acaba sumindo de suas próprias fantasias e trazendo Clee em sua imaginação.

"Sempre tenho esses pensamentos sobre as pessoas pelas quais sinto atração: 'De que tipo de mulher será que ele gosta?', 'Como será que ele faria sexo com ela?' Talvez seja apenas eu, mas não acho difícil entrar nesse jogo", diz a autora, casada desde 2009 com o diretor Mike Mills ("Toda Forma de Amor", 2010). "Homens, mulheres e crianças fantasiam sobre ser homens, mulheres e crianças, e até animais, quando isso funciona na busca de excitação."
Sexo, para ela, é um território sem fronteiras. "É muito fácil ser original no sexo porque é sempre a mesma coisa sendo repetida. É só sair um pouco do caminho de sempre e, uau!, você está numa terra nova. É quase
como trapacear."


A autora começou a escrever "O Primeiro Homem Mau" quando estava grávida de seu único filho, Hopper, 3, e o concluiu três anos depois. No livro, há um bebê misterioso que ressurge de tempos em tempos, Kubelko Bondy, e outro bem real, que aparece quando a história desacelera e embarca nos temas do amor e da maternidade. Toda a ideia do livro veio antes da gravidez, como um "presente para a Miranda do futuro", diz.

"Quando estava grávida, não tinha nada a dizer sobre o bebê, então o primeiro rascunho do livro estava bem fraco nessa área, mas nem me incomodei", comenta, sempre gesticulando os braços magrinhos e cheia de sorrisos.

Flavio Scorsato
"Hoje poderia escrever uns seis volumes sobre o tema. Mas, no final, há poucas coisas no livro que não poderia ter escrito se não tivesse o bebê. A maioria é sobre o tom de ser mãe, uma coisa muito difícil de falsificar."

INTÉRPRETE DE SI MESMA

Mas Cheryl não é Miranda. E ela se sente aliviada por não precisar levar a personagem ao cinema e interpretá-la, como faz nos filmes que dirige. "Foi libertador escrever sobre alguém diferente de mim. A pior parte dos meus filmes foi atuar. Não gostava das personagens."

Miranda, que cresceu em Berkeley (Califórnia) e largou a faculdade para fazer curtas e performances em Portland (Oregon) nos anos 1990, lançou em 2005 seu primeiro longa, "Eu, Você e Todos Nós", premiado em Cannes e Sundance. Ela interpretava uma artista plástica excêntrica e solitária com dificuldades para se relacionar com um vendedor de sapatos recém-separado.
Seis anos depois, após um intervalo para escrever um elogiado livro de contos, "É Claro que Você Sabe do que Estou Falando" (ed. Agir, 2008), e criar esculturas interativas para a Bienal de Veneza, Miranda estreou seu segundo filme, "O Futuro" (2011), no papel de uma dançarina medíocre.

"Não sinto que haja um mundo do qual eu faça parte secretamente", ela diz, ao ser questionada sobre onde se sente melhor entre seus pares, como escritora, diretora ou artista plástica. "A maior parte do tempo sou eu aqui sozinha, fazendo coisas em mídias diferentes, às vezes três projetos no mesmo dia. Meus amigos são escritores, diretores, artistas, mas não são radicalmente diferentes entre si. A maioria é um bando de mulheres espertas."

Lidar com as indústrias do cinema e do livro é, sem dúvida, bem diferente. "No cinema, as equipes são famosas por serem muito eficientes, trabalham juntas para fazer algo rápido e com qualidade. Nas editoras, o processo é mais intelectual e muito lento", diz.
Flavio Scorsato
TEM ALGUÉM AÍ?
Miranda aderiu a uma nova plataforma recentemente, ao criar e ajudar a construir o aplicativo de celular "Somebody" (grátis para iOS e Android), um projeto de arte que mistura serviço de mensagens e performance.


Funciona assim: você pode mandar mensagens para amigos dos quais tem o número de celular e que estejam cadastrados no programa. Quando alguém estiver perto de seu amigo, o aplicativo pergunta se ele pode entregar o recado pessoalmente. E lá vai o "somebody" ("alguém"), como um correio-elegante. Mesmo usando outra mídia, ela consegue explorar um de seus temas recorrentes: a obsessão por desconhecidos.


"Pessoalmente, não quero nada com estranhos, mas eles são uma grande fonte de inspiração. Não me sinto confortável com ninguém, nem com meu marido e meu filho", diz. "Amo os dois, mas há uma razão em ter uma casa inteira como escritório para ficar sozinha. Meu interesse por pessoas não é algo fofinho, e sim uma curiosidade desconfortável."

Miranda já entregou umas dez mensagens por meio de seu aplicativo, e um desconhecido já entrou em seu escritório sem bater para passar um recado. "É um jogo delicado, para ser jogado no espaço público. As pessoas não querem entregar mensagens bobinhas, e sim propostas de casamento, coisas assim."

A rapidez da tecnologia para criar "Somebody" fez livros e filmes parecerem lentos, e a artista usa o que aprendeu com o aplicativo em sua nova performance. "New Society" investiga como grupos são formados e desfeitos, usando interação com o público. "Toda semana mostro uma versão para uma plateia."

Seu próximo passo é voltar ao cinema. Ela trabalha num novo roteiro e recusou o convite para ir à Festa Literária Internacional de Paraty porque usará o mês de julho para escrever. "Quero entregar a primeira versão em agosto", diz, sem dar detalhes da trama. "Agora, tenho essas pessoas habitando minha cabeça, é reconfortante. Toda vez que não sei o que fazer com minha mente, penso nesse novo mundo." 

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