07
de janeiro de 2015 | N° 18035
DAVID
COIMBRA
Comida italiana é boa para
labradores
Esse
cachorro, eu o encontrei num lugar em que gosto de almoçar, aqui perto de casa.
É um pequeno mercado de produtos italianos com uma única mesa comprida para
refeições. O proprietário, Andrea, um toscano que carrega o sorriso sempre
aberto debaixo do bigode, supervisiona ele mesmo a cozinha, bendita cozinha
italiana.
Nesse
dia, repimpei-me com fettuccine com molho vermelho e carne de porco, uma delícia.
Foi na hora de pagar, em frente ao caixa, que vi o cachorro. Era um labrador
preto e estava preso pela coleira. Na outra ponta da coleira havia um homem. Um
cego. Enquanto ele pagava a conta, eu e o cachorro notamos um pedaço de carne
de porco com molho do tamanho de uma moeda de um real, no chão, a um metro da
minha botina. Devia ter caído recentemente do prato de algum cliente. O
labrador sentiu o cheiro da carne e deu um passo para alcançá-la. Mas o dono,
percebendo que ele se afastava, puxou a guia com força, fazendo com que
recuasse.
O
cachorro ficou fitando o naco de carne, depois levantou a cabeça e olhou para
mim. Havia uma expressão aflita em seus olhos compassivos e úmidos de labrador.
Era como se me pedisse ajuda. Decidi atendê-lo. Dei um biquinho no pedaço de
carne, na direção dele. Mas o chute não foi suficientemente forte, restou ainda
alguma distância, e o cachorro teve de se esticar para tentar pegá-lo. Só que o
dono, sem nem virar a cabeça, deu novo repelão na guia, agora com violência, até
certa raiva.
O
labrador se encolheu, entre resignado e triste. Olhei para ele. Ele para mim. Era
um olhar profundo. Um olhar de dor. De fome, talvez? Ou apenas de desejo
frustrado? E o homem? Teria ele notado que chutei a carne na direção do
cachorro e por isso se irritou? Ou se irritou porque o cachorro fez menção de
se afastar? Ou as duas coisas? Ele parecia brabo, ali, pagando a conta. Brabo
comigo? Com o cachorro? Com a vida? Afinal, eu devia ou não empurrar a carne
para baixo do focinho do labrador? Era o que o labrador queria, disso não tinha
dúvida, mas, se o fizesse, não estaria infringindo algum código de ética da
relação entre cegos e seus cães guias?
Maldição!
Quer
saber? Vou dar comida para esse cachorro! Vou! O cego que embrabeça, se quiser.
Azar o dele! Quem manda não dar comida para o cachorro? Dou uma gingada, faço
de conta que vou sair pela esquerda, saio pela direita e mando de trivela bem
debaixo do maxilar inferior do cachorro. Ele só vai precisar atirar a língua
pra fora para pescar o pedaço de carne. O homem nem vai notar. Vou lá. Vou!
E
fui. Fiz um movimento para o lado. E o cachorro compreendeu a minha intenção. Aprumou-se.
Salivou. Preparou-se para abocanhar a comidinha deliciosa do italiano e, então,
puxa vida, então o homem também percebeu. De alguma forma, ele pressentiu o que
eu faria, virou de leve o ombro na minha direção e não me olhou, porque olhar não
podia, mas demonstrou claramente que sabia o que eu pretendia fazer.
Com
o que, hesitei. Fiquei paralisado.
Não
me aproximei da carne no chão, disfarcei e perguntei ao Andrea quanto devia. O
homem ergueu o queixo, vitorioso, puxou o cachorro e dirigiu-se para a porta. Fiquei
observando os dois, homem e cachorro, afastando-se. Antes de sair, o labrador
girou a cabeça e olhou para trás, diretamente para mim. Entendi o que ele dizia
com aquele olhar. Não havia mais aflição ali. Havia desprezo. Como se rosnasse:
– Covarde!
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