03
de janeiro de 2015 | N° 18031
O
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Xeica
COMO
O ÁRABE USA um alfabeto que não é o romano, vocábulos foram transliterados de
diferentes maneiras
De
uma leitora de Curitiba, Palmira G., veio a pergunta que hoje respondo com
especial carinho (ela lecionou Português durante quarenta anos, e, mesmo
aposentada, nunca deixou de ensinar o amor ao idioma aos filhos e aos netos):
“Sempre que eles têm dúvida, recorrem a mim, mas dessa vez eu fiquei devendo:
minha neta mostrou uma notícia que fala de uma xeica que veio nos visitar. Isso
existe, professor? O senhor não acha horrível?”. Acho horrível, sim, dona
Palmira, mas se a senhora acompanhar minha explicação, verá que existe uma
hipótese muito, mas muito pior.
Vamos
começar com sheik, termo de origem árabe que serve para designar uma autoridade
cuja gradação pode ir do simples chefe de clã ou tribo até chegar a um príncipe
ou mesmo a um rei. Em vários países islâmicos – e, em especial, nos Emirados
Árabes –, as mulheres da mesma hierarquia recebem o título de sheikha. A
notícia que a senhora leu seguramente devia tratar da sheikha Mozah bint Nasser
Al Missned, esposa do emir do Catar, que esteve no Brasil no ano que acabamos
de encerrar.
Como
o Árabe usa um alfabeto que não é o romano, o vocábulo, ao ingressar no
Ocidente, foi transliterado das mais diferentes maneiras: jeque (Esp.), sceicco
(It.), Scheich (Al.), cheik (Fr.), sheikh (ou sheik, as preferidas do Inglês,
embora o OED registre mais outras dezenove variantes). No Português, como não
poderia deixar de ser, a forma tradicional sempre foi xeque (adotamos sempre a
letra X para essas transliterações: xampu, xerife, xarope, Xerazade).
Desde
o século 16, as páginas de Camões, de João de Barros e de Fernão Mendes Pinto
estão repletas de xeques, e assim vivemos muito bem até que Hollywood (e depois
a Rede Globo) puseram em voga por estas bandas o sheik do Inglês. Nos anos 20,
as brasileiras suspiravam quando Rodolfo Valentino, o eterno latin lover,
corria pelo deserto, com o albornoz ao vento, nos filmes O Sheik e O Filho do
Sheik; quatro décadas depois, nos anos 60, foi a vez da TV brasileira
reaproveitar o cenário “romântico” do deserto para lançar a novela O Sheik de
Agadir, que fez um grande sucesso na época. Por influência direta dessa forma
inglesa, terminou surgindo a variante xeique, menos usada mas também registrada
nos bons dicionários.
Agora
a senhora vai me entender: a esposa do emir de Catar vem ao Brasil; o repórter,
no que fez muito bem, não quer usar a forma inglesa, com o seu exótico SH e,
pior ainda, com o KH, cacófato próprio para piada. O que faz ele? Vai ao
dicionário e encontra duas opções, xeque ou xeique. Como se trata, porém, de
uma dama, ele sabe que precisa usar o vocábulo no feminino. E aí? Existe outra
saída? A senhora terá de concordar que, afinal, até que xeica não é tão
horrível assim...
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