terça-feira, 4 de janeiro de 2011



04 de janeiro de 2011 | N° 16570
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Shakespeare em Machado de Assis

Não há ficcionista brasileiro que tenha lido e aproveitado mais a Shakespeare do que Machado de Assis; e não há autor que mais tenha influenciado o brasileiro do que o gênio inglês. Desde a juventude, nosso maior escritor frequentou as páginas teatrais e poéticas do autor do Ham­let, e isso numa época em que o prestígio cultural da língua inglesa no Brasil era pequeno, muito menor do que o do francês.

Machado sabia que ali, e não em seus estimados franceses Voltaire, Pascal e Victor Hugo, estava a chave para os maiores segredos da psicologia humana, que sua literatura iria explorar com profundidade inédita em português.

Machado traduziu, parafraseou e citou Shakespeare desde sua juventude. A partir de 1870 essa relação se intensificou, em parte pelo amadurecimento do próprio autor brasileiro (nascido em 1839), em outra parte pela chance que teve de assistir a um conjunto expressivo de interpretações de peças shakesperianas feitas por uma companhia italiana de passagem pelo Brasil; foi a primeira vez que Machado (e talvez todo o país) pôde ver como era uma ótima montagem europeia do grande autor inglês, e registrou suas impressões em crônica da época.

Mas as maiores provas da importância do bardo inglês na obra do brasileiro acontecem em seu apogeu. A primeira vez que saíram publicadas as Memórias Póstumas de Brás Cubas, em folhetim, lá estava uma epígrafe shakesperiana, de As You Like It, em tradução do autor:

“Não é meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim somente, em quem descubro muitos senões”. Seu primeiro grande romance, assim, vem precedido de Shakespeare, que funciona aqui como um parachoque autocrítico.

Depois o mesmo dramaturgo apareceu em muitos contos memoráveis (como A Cartomante) e em crônicas, até ganhar sua maior homenagem em terras brasileiras, nada menos que o nervo psicológico do mais importante romance machadiano, Dom Casmurro.

Ocorre que Bentinho reencarna o ciumento Otelo – esta peça foi citada 28 vezes por Machado, em narrativas, peças e artigos –, vivendo o sentimento em seu cotidiano e medindo Capitu com Desdêmona, aquela culpada, esta inocente.

Machado sabia que, para ser grande, era preciso conhecer os maiores; Shakespeare foi a melhor referência que nosso grande autor poderia ter escolhido.

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