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segunda-feira, 8 de março de 2010
08 de março de 2010 | N° 16268
KLEDIR RAMIL
Autobiografia – A Idade Média
Atolado na inércia de uma vida sem atrativos – à base de água pura, abstinência sexual e uma dança fora de moda – resolvi chutar o pau da barraca e comprei um canivete. Com aquela arma no bolso me transformei, aos 6 anos de idade, em uma criança agressiva e rebelde.
O canivete me deu uma sensação de poder. Ameacei um vizinho recém-chegado, falei bobagens pra filha da Dona Magdalena e escrevi, com giz, um palavrão no quadro negro da sala de aula.
Mas a sensação de poder, rapidamente se desfez. Ao tentar aprender a manejar aquela arma branca, cortei o dedo indicador esquerdo de tal forma que quase a música popular brasileira perde um grande violonista. A cicatriz está ali até hoje para me lembrar sempre dos tempos de barbárie.
Num momento de descontrole, entrei no bar do Seu Joaquim e roubei meia dúzia de ovos de galinha. Joguei 4 na frente recém pintada da casa da Berenice e os outros 2 na porta de vidro bisotê da família Schmidt.
Não satisfeito, fui até o matinho dos fundos da escola e procurei um pé de pitanga. Mutilei a pobre árvore com o canivete e fiz uma forquilha em forma de ípsilon. Depois, passei na borracharia do Zé Bigorna e dei de mão numa câmara de pneu de bicicleta.
Fiz um bodoque e aumentei meu poder de fogo. Enchi os bolsos com bolinhas de cinamomo, que serviam de munição, e comecei a detonar as vidraças da vizinhança.
Recrutei vários amigos e montei um exército. Nosso arsenal somava oito bodoques, três canivetes, dois cacos de vidro e, pasmem, uma arma de chumbinho. Com aquela artilharia pesada decidimos cruzar a fronteira e invadir o território da Rua Mal Deodoro, habitado por gente que, mesmo que não soubesse, era considerada inimiga.
A salvação dos pobres coitados foi que, ao entrar em terras inimigas, avistei na varanda de um sobrado, uma guria que mexeu com meus sentimentos. Para não repetir William Shakespeare com mais uma história de amor impossível entre rivais, cancelei o ataque. Ato contínuo, fui até a frente do sobrado e gritei: “Julieta, joga-me tuas tranças”.
Um dos guerreiros caiu na risada e me corrigiu, na frente dos outros. “Não é Julieta, animal, é Rapunzel!” Mandei cortar a garganta do insubordinado e, como não cumpriram minha ordem, deitei armas e dei por encerrada a fase medieval. Começou então a minha fase romântica.
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